Fomos ter com o padre Matos e os amigos ao largo da Sé, ainda com a minha mãe colada aos calcanhares, para ver quem eram os rapazes com quem íamos e para os fazer prometer que nos iam trazer de volta sem um arranhão. Tinham estacionado aí os dois carros, um dos quais uma carrinha com apenas dois lugares. E esse foi o problema. Na altura de nos dividirmos pelos carros, cinco num e dois no outro, o padre Matos, que conduzia a carrinha, disse, “porque não vens comigo, António?”, e eu não tive cara para dizer que não.
Mais vale explicar-te logo o que senti. Resumindo muito simplesmente, fiquei chateado por não ir no outro carro porque os amigos do padre Matos eram todos muito giros, viris e simpáticos, Porque queria ir com o Jaime e não queria que o Jaime fosse com eles sem mim (ciúmes), e não queria estar sozinho ao pé do padre Matos porque ele me atraía sexualmente e eu achava-o irritante, hipócrita e idiota. É claro que na altura isto era apenas uma grande confusão na minha cabeça e suponho que emergia sob a forma de amuo, impaciência e fingido desinteresse. Mas lá fui, sentei-me ao lado dele.
Tenho estado a fazer um esforço para me lembrar do que falámos nessa pequena viagem, nós os dois. Falámos de livros, certamente, mas não me lembro das perguntas que ele fez sobre a biblioteca da tia Júlia. A minha cabeça estava noutro lado, no carro onde ia o Jaime, mas a conversa incessante dele e as perguntas insidiosas devem ter começado a irritar-me. Além disso, comecei a ficar com a impressão de que ele me queria saltar para cima. No momento em que entrámos para o carro, ele, esfregando a mão no meu joelho perguntou, “Então, pronto para a diversão?”. Eu fingi não ter notado um segundo sentido nas palavras e achei que, embora a mão dele se tivesse demorado um bocadinho demais no joelho e subido, ao retirar-se, talvez mais para a coxa do que o devido, não devia dar importância áquilo. Mas pôs-me em alerta. E enquanto ele continuava a enrolar perguntas numa conversa aparentemente inocente, eu só me lembrava da fábula da raposa e do corvo. Ele tinha definitivamente mais do que um interesse educado sobre mim, o Jaime, a nossa família. Terei sido eu quem lhe falou nessa altura da biblioteca da tia Júlia? Provavelmente. Mas não importa, fosse eu, o Jaime ou a própria tia Júlia, o cabrão por essa altura já tinha farejado o seu queijo e nós continuávamos sem ver a raposa disfarçada na pele da ovelha.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2006
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2 comentários:
Aqui não gosto de ler que "os amigos do padre Matos eram todos muito giros, viris e simpáticos" ou "e não queria estar sozinho ao pé do padre Matos porque ele me atraía sexualmente ".
Pode ser alguém hoje a falar do que era antes, mas a carta não serve para clarificar? Não o deve fazer progressivamente? Não deve ir deixando o leitor adivinhar, sem lhe explicar explicitamente? Acho que era melhor apresentar apenas a visão de criança, e não a explicação de adulto...
Pertinente comentário!
Há um problema com que tenho de lidar na escrita desta história que é estar sempre consciente de quem é o narrador e em que circunstâncias a está a contar.
Esta longa carta que o Jaime escreve à Joana está a ser escrita numa única noite. Por si só, já seria algo inverosímil que alguém conseguisse escrever tanto de seguida e ainda por cima à mão, mas pronto...
O Jaime precisa dizer imensas coisas à Joana e para as explicar da maneira mais rápida e simples, alterna entre a visão que teve delas na altura em que as viveu e a actual.
Há também coisas que eu, o escritor, gostaria de explicar em maior detalhe, mas muitas delas são coisas que a personagem Jaime parte do princípio que a personagem Joana já sabe.
Ou seja, no final, a história é um balanço entre eu escritor a escrever para o leitor e a personagem Jaime a escrever para a personagem Joana.
Neste momento o leitor tem de se aguentar um bocadito à bronca porque a personagem Joana ainda não lhe apareceu à frente. Paciência. Não perdem por esperar... ;-)
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