quarta-feira, 30 de novembro de 2005

008 - Os Herdeiros

Havia um piano em casa da tia Júlia. Estava plantado na sala, verticalmente encostado a uma parede, no lugar onde se esperaria uma televisão, e devia ter começado a criar raízes aí no século XIX. Fazia tão parte da casa como o estuque trabalhado dos tectos e certamente sobrevivera a todas as mudanças de proprietários do apartamento. Era um pouco como o actual frigorífico, que é o utensílio que fica para trás, quando se vende uma casa. Aposto que, na altura de uma mudança, aquele piano, ganhava nomes como “traste monstruoso” ou “elefante desafinado”. Era um objecto esquecido e a única utilidade que ainda tinha era como suporte de molduras e bibelots. Mas dava um certo “ar” à sala, e julgo que era por isso que nem mesmo a tia Júlia, que era tão prática e pouco dada a “ares”, o deixara ficar. E também, não se conseguia deixar de ter um pouco de pena daquele objecto.
Outra característica do piano era ter um efeito magnético em momentos ociosos. Ninguém resistia, a dada altura, a abrir-lhe a tampa e carregar nas teclas. Os adultos que faziam isso, paravam imediatamente assim que a primeira nota, num volume ineperadamente alto, ecoava pelo prédio. Era um som de agonia metálica e mecânica tão insuportável que só se podia gemer em solidariedade com o pobre instrumento.
Mas as crianças, ou seja, eu e o Jaime, tinhamos um verdadeiro fascínio por aquilo e, em fantásticos duetos a quatro mãos, ou despiques à vez, aperfeicoávamos a arte de extorquir daquele objecto os mais arrepiantes, insuportáveis e massacrantes sons. O objectivo final era fazer com que a tia Júlia viesse lá de dentro ensandecida e gritasse o seu habitual “Pelos sete demónios de Madalena!!!”, que era a sua expressão máxima de exasperação e que nos deixava sempre em convulsões de riso histérico.
A brincadeira tomou tais proporções que a tia Júlia teve de tomar medidas drásticas. E fui eu quem fez o copo transbordar com a última gota de água.
Os meus mais solitários momentos de ócio eram passados naquela sala, nas tardes em que eu tinha de esperar que o Jaime acabasse os trabalhos de casa dele. A tia Júlia normalmente deixava-me com um livro e ia para a cozinha tratar dos afazeres domésticos. Mas isto passou-se numa fase anterior àquela que te descrevi, em que o tráfico clandestino de livros me andava a alimentar um vicio de leitura. Isto de que te estou a falar passou-se quando eu tinha sete anos e a única coisa que me interessava era que o Jaime se despachasse para irmos montar a pista de carros para fazermos corridas. Não havia livro no mundo capaz de merecer a minha atenção, nesses momentos. E a minha fonte de consolo era aquele piano, que, com a sua voz de pecador torturado num círculo fundo do inferno, era a única coisa capaz de expressar o que me ia na alma.
E por mais raspanetes, e mesmo promessas de tareia que a tia Júlia me fizesse, eu não conseguia ficar sentadinho nos cadeirões da sala, com um livro no colo. Pelo canto do olho, aquele mastodonte anti-melódico chamava-me sempre para uma sessão de catártica agonia sonora.
Até que um dia, vinda lá de dentro numa fúria, depois de me atirar com a praga dos sete demónios da Madalena, a tia Júlia olhou para mim seriamente e deve ter tido uma epifania. Em vez de me dar os açoites que o comum mortal adoraria descarregar em cima de mim, disse-me, numa voz gelada, que não estava para aturar os meus olhitos de bambi hipócritas:
“Muito bem! Esta foi a última vez que isto aconteceu. Agora vais-te sentar ali, ler o teu livrinho e ficar calado. E eu vou tratar imediatamente do teu castigo. Vais ver, meu menino… nem sabes o que te espera!”
E foi para o telefone pôr em acção o seu mais maquiavélico e diabólico plano, que acabaria por me moldar, irremediavelmente, a vida.

terça-feira, 29 de novembro de 2005

007 - Os Herdeiros

Que acharás tu do Jaime? Tu só o viste duas vezes e ambas foram…bem…chamemos-lhes… circunstâncias invulgares.
O Jaime tem exactamente a mesma idade que eu. Isso, as viuvezes da minha mãe e da tia Júlia e a nossa vizinhaça foi o que de início fez com que passássemos tanto tempo juntos.
Mas uma coisa que acho curiosa, agora que olho para trás e vejo a mão da tia Júlia em tanta coisa, é que, embora ela cuidasse da nossa educação com igual interesse, nós nunca estudámos juntos na mesma escola. O Jaime era sempre posto em escolas particulares, liceus finos, universidade privada e eu estive sempre no ensino público.
Era só as tardes que passávamos juntos e, mesmo assim, muitas vezes, eu tinha de esperar que ele acabasse os trabalhos de casa, porque os meus faziam-se em meia-hora enquanto que os dele levavam a tarde quase toda. Mas eram depois as poucas horas ao fim do dia que valiam. Quando brincávamos juntos.
A minha mãe chegava antes do jantar para me vir buscar, vinda da universidade. Tão exausta que mal conseguia cozinhar. Mas, apesar dos meus pedidos insistentes, ela raramente cedia a ficar em casa da tia Júlia para jantar. Acho que ela queria aqueles momentos só para nós, mesmo que eu comesse a sopa de trombas, a pensar na nave de legos que eu e o jaime tinhamos começado a construir. E insistia em rever comigo os trabalhos de casa. Eram sufocantes, os trabalhos de casa. Uma idiotice. E as nossas noites passadas frente à televisão uma seca. Eu não me interessava pelas novelas e a minha mãe adormecia no sofá em menos de vinte minutos. Era nessas alturas que a ausência do jaime se assemelhava a uma dor. A minha mãe a ressonar, a sala iluminada pela aura inane da televisão, e o resto da casa às escuras. E a minha solidão.
Para além do Jaime, os meus únicos amigos eram os livros. O que não era exactamente saudável. Não preciso explicar-te em detalhe o que isto fazia à minha vida na escola. Eu era o menino que fazia sempre os trabalhos de casa, sabia tudo e tinha sempre boas notas. Odiavam-me de morte, na escola. E eu odiava aquele culto diário da estupidificação.
Quando foi que a minha mãe cedeu à tia Júlia? Não sei precisar a data. Mas começou certamente com as minhas aulas de Piano. E de norueguês.

segunda-feira, 28 de novembro de 2005

o "boobie break"

Voltando ao "mercador de veneza", uma das coisas que achei interessantes nesta nova adaptação cinematografica, foi o facto de, apesar de ser uma coisa toda muito british, visto a acção decorrer em Veneza, o realizador decidiu incluir uns quantos "boobie breaks" como homenagem ao audiovisual italiano.
O "boobie break", se não é uma invenção italiana, encontrou pelo menos na televisão italiana o ponto máximo de desenvolvimento. Consiste basicamente no seguinte: programa de variedades e ou cultura geral em geral, que, no momento em que começa a ficar demasiado sério, corta para intervenção de corpo de baile constituido por moçoilas avantajadas. Encontra também muita expressão na dialética entre o apresentador canastrão de fato escuro e a apresentadora boazona de vestidinho XS mas de decote XXXL. Ou seja, no momento em que as coisas ficam demasiado sérias, faz-se uns intervalo com uns melões, para nos lembrar das coisas boas da vida.
Isto é muito prático e pode ser aplicado na vida em geral como eu por vezes faço, utilizando aliás umas das grandes exportações italianas do boobie break: a Sabrina.
A coisa funciona assim:
Você está numa conferencia, no lançamento de um livro, a ver uma ópera, uma peça no Nacional ou um filme do Kiarostami. No momento em que se sentir prestes a ensandecer faça o seguinte:
1 - Lembre-se da Sabrina, recordando vividamente aquelas boinga-boingas balouçantes, constantemente em risco de saltarem para fora do bikini branco.
2 - Estremeça.
3 - Cantarole mentalmente "boys, boys, boys!"
O alívio é imediato e funciona indiscriminadamente com homos e heteros.

006 - Os Herdeiros

Mas foi só depois da morte do senhor Augusto que começámos a frequentar mais a casa da tia Júlia. É um bocado parvo dizer “frequentar”, como se fosse um café, porque na verdade é a minha outra casa.
Voltei a ler o que te escrevi sobre aquele episódio do velório do senhor Augusto e percebi que, de facto, até aquela altura, a casa da tia Júlia era um território inexplorado para mim, com sítios proibidos, assustadores mesmo. E é muito estranho pensar nesses termos sobre um sítio que se tornou um lar para mim e no qual nada me é estranho. Nem mesmo o quarto da tia Júlia, que fora muito tempo o santo dos santos, porque nos últimos anos, durante a doença dela, juntávamo-nos todos aí, como se fosse a sala, como se nada se passasse…E sabes, nessa altura, nem por um momento me lembrei que fora naquela mesma cama, onde a tia Júlia ia morrendo aos poucos, que eu vira o homem de negro sentado ao lado do senhor Augusto. Nem quando me sentei no mesmo sítio onde ele se sentara e disse ao Jaime, igualmente drenado de sentimentos, constatando o facto, as mesmas palavras que dissera ao homem de negro: ela está morta.
Outra coisa que também se torna evidente no que escrevi é que, de certo modo, vinte anos depois, continuo sem perceber bem o que se passa à minha volta. Que tenho andado a viver como se a vida fosse uma festa, quando afinal é um velório.
Perdoa-me, Joana. É difícil combater toda esta morbidez quando durante uma semana (ou uma vida) se anda encharcado em morte e em sangue (e isto literalmente!!! A propósito, a ferida já se nota pouco. A cicatriz vai ficar grande, de certeza, mas fica um pouco escondida pela barba, que estou seriamente a pensar deixar crescer, e só aqui no quarto é que tenho tirado o cachecol. É estranho olhar-me no espelho. Fico mesmo diferente de barba. Bastou uma semana sem a fazer. E sinto-me diferente, também. Sabes, acho que estou a precisar de chorar, para verdadeiramente voltar a mim…)
Enfim, perdoa-me todas estas digressões mas é difícil não me perder. Ao ler o que já escrevi percebo que isto não será útil apenas para ti. Eu preciso voltar a sítios da minha vida que são como aquele corredor da casa da tia Júlia. Eu agora sei perfeitamente onde estão os quartos, a despensa, a cozinha. Sei onde vai dar cada uma das portas. Mas não é o hábito que torna as coisas mais compreensíveis. O hábito cega-te. Eu preciso voltar a esse corredor e tentar perceber o que vi quando abri as portas, em diferentes momentos da minha vida. Tenho a certeza que será aí que vou achar a pista de que preciso agora para encontrar o Jaime. As páginas amarelas de Salzburgo são inúteis. Talvez até consiga perceber do que é que ele anda a fugir. Porque, sabes, eu tenho uma séria suspeita do que é, mas, como o Dom Quixote alternativo, eu, neste momento, preferia não acreditar em gigantes…

Ser ou nao ser gay, eis a questao

Este fim de semana viu-se lá em casa o DVD de "O mercador de Veneza". A recente adaptação da peça de Shakespeare ao cinema que causou alguma polémica por causa de uma suposta "carga homoerótica", especificamente uma beijoca entre o Jeremy Irons e o Ralph Fiennes. Não sei porquê tanto burburinho, os rapazes mal roçam as barbas! Estava á espera de mais língua. Mas enfim... De qualquer maneira tem de se levantar o polegar a esta adaptação (já que não se levanta mais nada...) porque, sem o sublinhar da relação amorosa entre aquelas duas personagens masculinas, o enredo não faz lá grande sentido.
Finalmente compreendo porque é que esta é daquelas peças do Shakespeare que quase ninguém conhece (eu inclusivé não fazia idéia do que era a história). Para começar, o enredo é complicado à brava e não se consegue tirar uma moral simples da coisa. Depois, a tal coisa de o subtexto homoerótico precisar de vir à tona para que os diálogos e motivações das personagens possam fazer sentido (santo deus, a ponto de as três personagens femininas se vestirem de rapaz e os respectivos maridos fazerem comentários alarves sobre ir para a cama com rapazitos!!! No tempo do Shakespeare em que só havia actores masculinos em palco a coisa devia ser de gritos...). E depois, a personagem complexa do judeu Shylock (aqui numa interpretação genial do Al Pacino) que, está-se mesmo a ver, numa má leitura, irá descambar sempre num tom anti-semítico.
Porque o que é curioso nesta adaptação é que, dando verdadeira expessura às personagens, se compreendem os seus motivos e, de repente, não há ninguém que seja verdadeiramente o mau da fita. São antes todos simples humanos, com falhas e imperfeições.
Curioso é ainda a actualidade da obra que, para além da mensagem sobre a intolerãncia, fala ainda sobre a questão do materialismo, ganância económica e endividamento. Quando se apanha o metro em Lisboa e se vê todos os anúncios de agencias dispostas a emprestar dinheiro para que nos possamos endividar neste natal não podemos deixar de nos perguntar: que diferença há entre três mil ducados e três mil euros? A resposta é: os três mil ducados vêm em moedas de ouro dentro de um cofre, os três mil euros são um número impresso no extracto do multibanco.

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

005 - Os Herdeiros

Mesmo que haja qualquer coisa de dura verdade nesta analogia de Dom Quixote e Sancho Pança, a nossa relação nunca foi essa. O Jaime para mim é um… (deus, a nossa família é tão complicada!)… um primo, um irmão, um amigo, um amante. É o meu…amado.
Mas deixa-me explicar-te a genealogia. É muito simples até, mas, não sei porquê (e, de momento, nem quero tentar saber porquê), enredámo-nos todos numa teia enganosa porque se trocaram nomes (e até pessoas…mas já lá chegaremos…).
O meu pai era, de facto, sobrinho da tia Júlia. Foi por isso que a minha mãe sempre lhe chamou isso. E eu, de ouvir a minha mãe, chamava-lhe isso também.
O Jaime chamava-lhe avó Júlia porque ela fora casada com o senhor Augusto, verdadeiro avô dele, mas ela não fora mãe do pai do Jaime.
Ou seja, eu e o Jaime se calhar nem somos suficientemente chegados por laços de sangue para sequer nos chamarmos primos. Crescemos em casas diferentes, mas fomos criados como se fôssemos irmãos. Morávamos com duas ruas de premeio, mas acabávamos sempre por fazer uma pequena família, eu e a minha mãe, o Jaime e a avó dele. É que, a toda a volta, para onde quer que se olhasse nos ramos da árvore geneológica, só havia mortos. E desses, evitava falar-se. Principalmente do meu pai, porque a minha mãe nunca lhe perdoou o facto de ele se ter enforcado na cozinha, no dia do meu primeiro aniversário.

Colheita 2005

Fiz a minha selecção pessoal dos artistas e canções que marcaram o meu ano de 2005. (Nada como um novo tema de playlist para o iPod). Como de costume, isto das listas é sempre muito imperfeito. Não está tudo porque houve coisas que ainda não ouvi (Piano Magic, The white birch, etc..), ainda há uns restos de 2004 mas que só me chegaram aos ouvidos este ano e limitei-me a uma canção por grupo/artista (excepção aberta para os Dead Can Dance só porque sim). Conclusão: excelente ano de consumo musical.

Ambulance Ltd – “Heavy Lifting”
Andrew Bird – “Fake Palindromes”
Animal Collective – “Banshee Beat”
Annie – “Heartbeat (Royksopp Mix)”
Antony and the Johnsons – “Fistfull Of Love”
The Arcade Fire – “Rebellion (Lies)”
Billie Holiday – “Speak Low (Bent Remix)”
Bloc Party – “So here we are”
Cass McCombs – “Equinox”
Claudia Brucken – “Lipstick Vogue”
The Cloud room – “hey now now”
Dead Can Dance – “Saffron”
Dead Can Dance – “Hymn For The Fallen”
Depeche Mode – “Suffer Well”
Destroyer – “Notorious Lightning”
dEUS – “What We Talk About”
Devendra Banhart – “Cripple Crow”
Editors – “Munich”
Fiery Furnaces – “Here Comes The Summer”
Franz Ferdinand – “Come on home”
I Monster – “Heaven”
Interpol – “Public Pervert”
Kate Bush – “somewhere in between”
Khonnor – “phone calls from you”
Ladytron – “International Dateline”
LCD Soundsystem – “Tribulations”
Madeleine Peyroux – “Between The Bars”
Magnétophone – “...And May Your Last Words Be A Chance To Make Things Better”
Magnolia Electric Co. – “Hard to Love a Man”
Martha Wainwright – “The Car Song”
Mount Sims – “How We Do”
The National – “Abel”
Nine Horses – “The Banality Of Evil”
Nouvelle Vague – “Making Plans For Nigel”
Patrick Wolf – “The Libertine”
Plaza – “we came through”
Royksopp – “What Else Is There”
Rufus wainwright – “the art teacher”
Sigur Rós – “gong”
Stina Nordenstam – “From Cayman Islands with Love”
Sufjan Stevens – “Chicago”
The Veils – “The Leavers Dance”
VHS or Beta – “Night On Fire”

Em termos de concertos o ano também primou pela excelencia. Foram inesquecíveis:
Antony, Dead Can Dance, Rufus, Sigur Ros, The Young Gods

O momento alto de reciclagem foi a atinada encomenda via amazon.uk do CD do velhinho album
"Helleborine" dos Shelleyan Orphan

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

intermezzo da realidade

Para os que se interrogam, sim, resolvi começar a deixar aqui uma nova história que estou a escrever. Estão a ter acesso a ela praticamente em tempo real. Está a sair directamente do teclado para a janelita do "posting - create" e o meu "save" é o botãozito "publish post".
Porquê, perguntam os curiosos, os incautos e os óciosos?
Pela simples razão de que é um bom motivo para eu me forçar a escrever (quase) todos os dias.

004 - Os Herdeiros

A minha relação com o Jaime foi, desde sempre, moldada pela tia Júlia. É claro que eu me apercebia disso, mas só nestas últimas semanas me apercebi do frio, calculado, propósito de tudo. E é isso que principalmente me tem perturbado, porque não creio ter compreendido ainda a verdadeira extensão daquilo que, receio, seja…
(espera, deixa-me tentar explicar outra coisa primeiro)
Esta manhã, no quiosque do aeroporto, enquanto olhava para os livros (velhos hábitos nunca se perdem, de resto como ia eu passar o tempo? A roer (ainda mais) as unhas?) assaltou-me uma recordação quando vi uma edição do Dom Quixote.
A forma como a tia Júlia nos fazia ler os clássicos era verdadeiramente insidiosa. Esse era um daqueles seus planos maquiavélicos de que, depois, ela própria se ria. Acontecia eu achar, casualmente, metido na minha mochila da escola entre os livros de Física e Matemática, as Fábulas de La Fontaine, ilustradas por Gustave Doré. E em vez de passar a tarde a fazer os trabalhos da escola, devorava aquelas histórias com animais sábios e tolos.
É claro que eu sabia que for a ela quem colocara o livro ali. Mas era um segredo. Só meu e dela. E depois, inevitavelmente, vinha um interrogatório. Subtil, mas impiedoso.
Estávamos a lanchar, e ela, cortando o queijo, diria:
“Diz o povo que comer muito queijo torna as pessoas esquecidas.”
E eu:
“Isso é verdade? “
“Não para os meninos bonitos. E tu és um menino bonito, não és, António?”
E eu ria-me.
“ Um corvo é que não sou de certeza, mas a tia é uma raposa! Das mais matreiras”
E riamo-nos os dois. E o Jaime ficava a olhar para nós a perguntar:
“O que foi? O que foi?”
“Explica-lhe lá…” diria ela, e eu passaria a tarde a contar as fábulas que lera ao Jaime, começando pela da raposa que elogiara a voz do corvo para que ele abrisse o bico e deixasse cair o queijo. Ela fica a ouvir-nos. Sorridente.
E , meses ou semanas depois, acharia eu, por acaso, na mesa da sala, uma cópia do Dom Quixote, ilustrado também por Gustave Doré, aberto na página em que Sancho Pança puxa o burro teimoso monte acima e olha desconsolado para Dom Quixote e Rocinante que cairam ridiculamente de pernas para o ar, derrotados pelos moinhos. Divertidíssimo, eu pegava no livro, lia umas quantas páginas, e tinha de o “roubar”. Punha-o na mochila e lia-o em casa, de uma assentada, ao longo de umas quantas noites. Foi assim que depois vieram “A Divina Comédia” e o “Paraíso Perdido”. Gustave Doré como perverso cúmplice da tia Júlia.
Mas o que me veio à memória no aeroporto foi uma conversa que tivémos anos depois, em que ela aproveitou para me tentar explicar uma coisa através do Dom Quixote. Tinhamos começado a falar de religião (que era assunto banal naquela casa) e depois de fé, e de crença, e no final a conversa descambou mais ou menos nisto, exemplo típico da lição de moral à la tia Júlia:
“António, as pessoas acreditam no que querem acreditar. Não podemos ridicularizar a fé de outras pessoas porque aquilo em que elas acreditam é a realidade para elas. A realidade é sempre uma construção mental do individuo. Lembras-te do Dom Quixote? Do episódio dos moinhos? Dom quixote e Sancho Pança passam por uns moinhos num monte e o Dom Quixote, convencido de que estes são gigantes, ataca-os e acaba espatifado e feito num oito, com o Sancho pança espantado com tanto ridículo.
Mas agora, imagina tu o oposto. Imagina que, de facto, os moinhos eram gigantes que, ao longe, Dom Quixote julga serem moinhos (a vista dele não devia decerto ser grande coisa) porque ele não acredita em gigantes. Seriam ambos certamente atacados pelos gigantes e Dom quixote, fraco como era, não conseguiria defender-se a si nem ao seu amigo. Dom Quixote talvez se safasse, porque, afinal de contas, tinha uma armadura, mas, os gigantes seriam certamente maus e impiedosos, pelo que nesta versão inversa, Sancho Pança não escaparia com vida e seria ele a jazer no chão, inevitavelmente morto.
Agora, o que achas preferível? Alguém submeter-se ao ridículo por acreditar em algo sobrenatural ou alguém ser incapaz de salvar um amigo da morte por não acreditar naquilo que tem em frente dos olhos?”

003 - Os Herdeiros

Salzburgo, Dezembro de 2005

Querida Joana:

Acho que esta vai ser a carta mais longa da minha vida. Afinal de contas tenho de te contar a minha vida, para que percebas. Pelo menos para que tenhas uma idéia melhor do que se está a passar. Eu também ainda não percebo bem. E, francamente, cada vez tenho mais medo de perceber…
Cheguei aqui esta manhã e, mal larguei as malas no hotel, saí à procura do Jaime. Tanto quanto sei, não está em nenhum hotel. Mas também só fui a alguns mesmo no centro. A propósito, Salzburgo é uma cidade estupidamente bonita mas, como calculas, não estou com uma disposição de turista. Se estivesse com o Jaime num dos nossos passeios, seríamos verdadeiramente as irmãs Schlegel, como as mamã nos chamava. A meter o nariz em todas as igrejas, museus e bibliotecas. A tomar cafés e chás nas esplanadas. A apreciar as vistas panorâmicas… Mas está frio, um frio de rachar, estou sozinho como a merda e Salzburgo começou a deprimir-me. Ou, para ser mais exacto, a deixar-me mais triste do que preocupado. O tempo estava carregado de nuvens logo quando aterrei e só tem ficado pior. À tarde começou a chover , mas à noite é bem capaz de nevar, com o frio que está. Voltei para o meu hotel e pedi as páginas amarelas na recepção. Passei metade da tarde a ligar para hotéis. Nada.
Enfim… depois desisti e tenho estado aqui às voltas, como um animal na jaula sem saber o que fazer.
Há bocado dei por mim a ter pena de não saber rezar. E depois enfureci-me comigo mesmo por estar a ser tão estúpido e a ter uma recaída cristã. Mas é o desespero, sabes… eu sei que sabes…
Espero que não estejas muito zangada comigo mas, como espero que venhas a perceber depois de leres isto, fiz o que o meu coração mandou. (É tão antiquado, falar assim. Tão novelista e vitoriano… que importãncia tem o meu coração no meio disto tudo?) Mas também sei que, se não tivesse seguido aquele impulso, teria ficado retido em Portugal. De certeza que não me deixavam sair do país.
Espero que a polícia não te esteja a dar muitos problemas. A minha mãe tentou telefonar-me mas eu não estou em condições de falar com ela. Mandei-lhe só um sms a dizer que estou bem, que está tudo bem.
Não está nada bem. Há semanas que nada está bem. Desde que a tia Júlia morreu que tudo se tem estado a desmoronar.
A minha mãe vai-te ajudar, vais ver. Ela tem um espírito prático. Verdadeiramente germânico.
Mas nada…nada, Joana, percebes? Nada me vai fazer deixar de sentir remorsos por te deixar assim, com a casa…não, com a vida, toda coberta de sangue, toda manchada de horror.
A única explicação que há para isso é o meu amor pelo Jaime. E é isso, principalmente, que eu te vou tentar explicar.

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

002 - Os Herdeiros

A minha mãe apareceu então e ralhou-me, perguntando-me porque era mau, porque não ficava quieto e dormia como um bom menino e porque fora para ali, o que estava ali a fazer. Ia-me fazendo todas estas perguntas, numa voz sussurrada mas zangada, irritada, enquanto me pegava ao colo e me levava de volta para a festa que, começava eu a perceber, era um velório (se bem que na altura eu lhe chamasse simplesmente funeral, incapaz de distinguir entre as diferentes socializações e burocracias da morte)
Eu achei que precisava de me desculpar e disse:
“Estava a conversar com aquele senhor.” e apontei para o fundo do corredor, para a porta que ela fechara cuidadosamente.
“Não sejas mentiroso!”
“Eu não sou mentiroso!”
“Então não digas disparates. Aquele senhor já não pode falar.”
“Ele falou comigo.”
“Ai, tanto disparate, vamos ter de pôr pimenta nessa língua.”
Isto alegrou-me um bocadito porque pimenta era uma coisa de adultos, que nunca me tinham deixado experimentar mesmo que eu pedisse. Mas não percebi a que propósito vinha isto.
Entrou na festa ainda comigo ao colo e riu-se para a tia Júlia, a avó do Jaime.
“Veja lá este tontinho. Entrou no quarto do Senhor Augusto e disse-me que estava a falar com ele.”
A tia Júlia não se riu. Olhou para mim muito séria e só então é que eu percebi que devia ter feito uma grande asneira.
“Vem cá”, disse ela, e estendeu os braços para que eu passasse do colo da minha mãe para o colo dela. E depois sentou-se logo, que eu já era pesado. Aliás, já começava a ser estranho que me pegassem assim. Há muito tempo que eu não pedia colo e já ninguém mo queria dar. Era difícil perceber se estavam mesmo zangadas comigo, com tanto mimo.
“Então, conta lá, que conversa era essa com o Augusto?”
Eu agora já percebia melhor o que se passava. Era o funeral do senhor Augusto, o avô do Jaime. Eu só o vira uma vez. Era o senhor que ficava sentado num cadeirão, no quarto escuro. A razão porque nunca se podia fazer barulho nos fundos da casa. O motivo porque se tinha de fazer silêncio a certas horas do dia. Não era uma pessoa de quem eu gostasse muito.
Compreendi que era ele quem estava deitado na cama, com os sapatos brilhantes, mesmo que não lhe tivesse visto a cara. E por isso disse:
“Não era com ele que eu estava a falar, era com o outro senhor.”
“Então, o que é isso? Agora pões-te a inventar histórias? O que é que te deu? Estás mesmo a querer levar uma palmada nesse rabiosque!” A minha mãe estava mesmo zangada comigo. Eu tentei começar a chorar, mas não estava lá muito triste por isso só devo ter conseguido fazer uma cara ridícula. A tia Júlia olhava para mim e riu-se um bocadinho.
“E quem era esse senhor, diz lá à tia.”
“Não sei.”
“Como é que ele era?”
“Tinha uma camisa preta.”
“Cabelos brancos?”
“Sim.”
“Um fio de ouro, com uma cruz, por cima da camisa?
Esta pergunta era mais complicada. Fechei os olhos e tentei lembrar-me. Deve ter sido isso, juntamente com todo este interrogatório que impediu que me esquecesse do homem, mesmo tendo passado tanto tempo sem que a memória voltasse a trazer à tona o episódio que só agora, vinte anos depois, faz tanto sentido, explica tanto.
“Sim, o senhor tinha um colar.”
A tia Júlia sorriu um pouco. Voltou-se para a minha mãe.
“Deixa o miúdo, Marta, ele não está a mentir.”
“Mas tia, não estava lá mais ninguém!”
A tia Júlia voltou-se para mim e começou a pentear-me com a mão, que era coisa que me irritava que os adultos fizessem. Mas achei melhor ficar quieto. Eu estava nas boas graças dela e era melhor aproveitar.
“Estava sim, Marta. Mas tu não o podias ver.”
A minha mãe não disse nada. Ficou só a olhar para mim. Eu achei que já devia estar tudo bem por isso disse:
“Posso comer bolo?”
A tia Júlia fazia imensos bolos, fosse qual fosse a ocasião. Estava um em cima da mesa e eu tinha estado o tempo inteiro a olhar para ele.

terça-feira, 22 de novembro de 2005

001 - Os Herdeiros

Isto é o que tenho de começar por te contar. Aconteceu teria eu 5 ou 6 anos. Aconteceu por causa do sangue. Eu tinha sangrado, sabes, por ter batido com a cara numa cadeira. Eu e o Jaime andávamos sempre a correr. E havia uma festa. Eu julguei que era uma festa. Tinhamos vindo a casa do Jaime porque havia uma festa. Foi a explicação que achei para tanta gente em casa deles. Era uma festa de adultos. Mesmo que estivessem todos de negro e não houvesse música.
Eu e o Jaime brincávamos, que os adultos pouco nos interessavam. E, na correria, eu bati numa cadeira e comecei a sangrar do nariz. Sei que fiquei coberto de sangue e lembro-me de chorar, não por estar a sangrar, mas por ter medo que me batessem por me ter sujado.
Levaram-me da sala, limparam-me, assoaram-me tirando o sangue, o ranho e as lágrimas. E depois tentaram deitar-me no quarto do Jaime. Eu fingi dormir para que me deixassem sozinho. E quando fiquei em paz levantei-me para ver os brinquedos do Jaime. Ele tinha um comboio. E carrinhos.
E quando me cansei disso abri a porta do quarto e olhei para o corredor. Estava escuro, e era demasiado comprido, todo portas. Eu ouvia o ruido da festa, as vozes dos adultos, mas ninguém podia saber que eu estava acordado. Experimentei as outras portas. A casa de banho. Um armário. E depois um quarto.
Neste nunca tinha entrado. Pela porta entreaberta espreitei lá para dentro. Estava escuro. Na cama estava deitado um homem vestido e calçado. Fato preto, sapatos engraxados e de negro brilhante. E ao lado dele sentava-se outro, na beira da cama. Estava também vestido de negro, mas apenas de calças e camisa. Camisa negra. Foi isso que eu achei estranho. As camisas eram sempre brancas. Ele olhou para mim. E sorriu. Eu disse:
- Ele está morto.
Não foi uma pergunta. Apenas disse o que percebera nesse momento, que o homem deitado estava morto.
O homem da camisa preta assentiu. E depois disse-me qualquer coisa. E durante vinte anos não me lembrei do que ele me dissera.

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

...(this must be underwater love)...

Cobri-me de lama e deitei-me
no leito do rio,
esperando por ti.
O coração uma pedra, tremendo de frio,
resistindo à corrente,
âncoramor.

sexta-feira, 18 de novembro de 2005

o hinberno

Estou doente há mais de uma semana. Ainda não percebi se é gripe ou constipação, mas uma dessas será. E apesar de me sentir mal à brava há um prazerzito secreto em ter uma desculpa para me enterrar na cama e simular a hibernação.
Quero férias na cama com um bom livro!!! É para isso que serve o inverno, o frio e o mau tempo!!
A chatice é a minha consciência, que me obriga a trabalhar mesmo nos dias em que tenho ficado em casa. Como é que o mundo funcionava antes dos computadores portáteis e da internet??

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

truques de luz

Em frente à janela do meu escritório há um prédio banalíssimo, mas esta tarde o sol está a bater numa das varandas e, por momentos, a luz reflectiu-se de lá para cá e fez-me levantar os olhos do écran do computador. Assenti, tal como os ramos do jacarandá, a meio da rua, concordando com a beleza.

Noites selvagens

Um amigo meu foi assaltado e agredido ontem à noite quando saiu sozinho de um bar gay em Zagreb, na Croácia. Ao que parece há por lá um gang que habitualmente espera que alguém saia sozinho desse bar para exercer um pouco de violência, coisa que o meu amigo turista desconhecia e alguém se esqueceu de o avisar...

Há cerca de um mês, outro turista, conhecido de um amigo meu aqui em Lisboa, foi para os copos no bar Portas Largas. O que se passou depois de lá ter entrado é um branco total. Alguém lhe pôs qualquer coisa na bebida e ele acordou no dia seguinte no quarto do seu hotel, mas tinham-lhe roubado tudo. Voltou ao bar para perguntar se se lembravam de o ter visto por lá e ficou a saber que não era o primeiro a quem tal acontecia...

terça-feira, 15 de novembro de 2005

aberraçoes modernas

Uma das maravilhas da tecnologia é pôr na mão do mais comum dos mortais os meios com que concretizar os seus caprichos artísticos. Este fim de semana, graças ao Garageband, criei um "maravilhoso" momento musical a partir de um poema de T.S. Eliot recitado pelo mesmo e uma música pirosérrima de Azis (a superstar (agora cometa) búlgara). A técnica do corta e cola permite estas pequenas aberrações que surpreendem. De alguma maneira isto faz sentido e soa bem. Infelizmente, devido á lei dos direitos de autor, não posso partilhar a coisa sem ser submetido a alguns processos judiciais. ...mas nada me impede de dar a ouvir aos amigos, assim como assim, esses já sabem que às vezes sou dado a estes desvarios...

a espera de Fevereiro



Os criadores do fenomenal jogo de Playstation "Ico" andam há mais de cinco anos à volta de "Shadow of the colossus".
É suposto ser lançado em Fevereiro de 2006 e há quase um ano que rodam trailers pela net que fazem os fãs de "Ico" salivar profusamente. Dizem os críticos sortudos que já meteram a mão na demo que é o mais próximo de uma experiência mística que se pode ter com uma playstation. Eu fui ver o novo site do jogo (http://www.shadowofthecolossus.com/) e também estou todo húmido... ò pessoal, despachem-se lá com isso!!!

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

Momentos de grande televisao



De facto, cada vez mais a televisão é um sitio onde passam alguns programas no intervalo dos anuncios. Por ser anormalmente desprovido de tvCabo, a minha glamourosa Bang & Olufsen só apanha os 4 canaizitos da ordem e todos com chuva. Assim sendo, televisão é uma coisa que vejo por alguns minutos, antes de ligar a playstation.
Ontem, calhou-me ver um anuncio no segundo canal: Um gajo podre de bom em cuecas amarelas atravessa um apartamento modernaço e, sem ligar peva a uma miúda com o cio que se espoja num sofa, vai à varanda, coça o rabo (em grande plano), coça os frontais e cospe para o chão.
Isto sim é grande televisão! Fiquei tão atordoado com o gajo podre de bom e o grande plano das suas nádegas dentro de cuecas amarelas que levei uns bons minutos até perceber que era um anuncio anti-tabaco (uma nobre causa). Pensando bem, o anuncio não faz sentido nenhum e é a coisa mais estúpida que vi nos ultimos tempos. A frase pay-off era tão ridícula que nem me lembro dela. Mas estarei eu preocupado com isso?... O anuncio funciona perfeitamente em mim porque me cola ao écrán e podem ter a certeza que não será aos 32 anos que começarei a fumar. Viva a publicidade institucional do segundo canal!!!

PS_ depois de breve pequisa na net: os videos da campanha (afinal são 3!) estão disponíveis aqui:

http://cardiologia.browser.pt/PrimeiraPagina.aspx?ID_Conteudo=127

terça-feira, 8 de novembro de 2005

Monumentos

Ando obcecado com comida. Uma das minhas alegrias mais recentes foi descobrir umas bolachinhas de água e sal a que a fábrica junta azeite, azeitonas e oregãos. São tão boas que quase apetece escrever uma carta de agradecimento a quem inventou tal receita. Coisas destas podem começar cultos, religiões, impérios, civilizações. Mereciam pelo menos um monumento.

É que se se fazem monumentos para lembrar pessoas deviamos lembrar-nos também da comida que faz a nossa cultura. No Alentejo, por exemplo, bem se podiam fazer uns monumentos ao queijo (em Nisa), ao vinho (em Borba), aos coentros, etc.... Em Belém, já era altura de se erguer algo em louvor ao Pastel de Nata ali no meio dos navegadores e dos vice-reis da ìndia!

Nisto há alturas em que percebo perfeitamente os americanos. Se eu consigo manter uma cintura minimamente apresentável é por felizmente viver num país livre de donuts:

Muda-se o ser, muda-se a confiança

Ontem à noite, lá em casa, estivemos a ver os documentários "making of" da série "Nip/tuck". Para além de ter ficado espantado com a lucidez dos actores, realizador e escritores (não admira que a série seja boa) alguém referiu a certo ponto que os Estados Unidos são um país obcecado com a mudança pessoal e que, sendo tão difícil fazer mudanças no interior, se passou a tentar compensar isso com mudanças corporais, seja simplesmente através de exercício físico ou, mais radicalmente, com cirurgias plásticas.

Isto lembrou-me um comentário que tinha lido há pouco tempo num forum sobre livros em que alguém dizia que os livros que lhe agradavam eram os livros em que as personagens mudavam, alteravam o seu comportamento (sempre para "melhor", refira-se).

E de facto, olhando para uma grande maioria da ficção que consumo, que vem também na sua maior parte do mundo anglófilo, há sempre essa convicção marcada de que as pessoas podem mudar, admitir os seus erros e seguir redimidas pelo caminho do amor, da moral ou da justiça.

É bom acreditar nisso. Até eu gosto de acreditar nisso. Mas a minha visão cínica do mundo leva sempre a melhor. Eu não acho que as pessoas de facto mudem. Acho que há apenas uma adaptação às circunstâncias que é feita sempre com o propósito egoísta de melhorar a sua própria vida (conseguindo mais amor, mais moral e mais justiça).

Neste ponto de vista, olhando para os meus dois livros publicados, percebo perfeitamente porque é que o seu sucesso é tão diferente:

_ No romance para adultos ninguém muda. As personagens são cobardes, fogem à vida porque isso implicaria tomar iniciativa e provocar mudanças internas de personalidade e de valor moral. Escolhem sempre a alternativa fácil. E mesmo que no final não pareça ser assim, o final feliz graças à mudança é uma mera ilusão.

_O livro infantil é, no fundo, exclusivamente sobre mudança, sobre construção de identidade, alteração de comportamentos que trazem harmonia ao mundo. É (literalmente) uma visão arco-íris da humanidade. É aquilo em que queremos acreditar quando ainda somos crianças.

Tendo isto em conta, percebo perfeitamente porque é que o livro infantil, em 4 meses, vendeu quase o dobro do que livro para adultos em 2 anos...

E eu, que balanço pessoal é este entre criança e adulto, cinismo e esperança? ...Até agora, vai bastante equilibrado, julgo eu...

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

o novo saramago

E de repente, passa-se numa livraria e lá está um livro novo do Saramago. Onde é que ando para estas coisas me apanharem de surpresa?!
O mais surpreendente foi o livro ter um bonequito na capa e ser fininho (ou pelo menos metade da espessura habitual).
Comecei por ficar intrigado com a a traça/borboleta da capa, com a a caveirinha à lá "Silêncio dos Inocentes". Será o primeiro thriller do nosso nobel? Depois li as primeiras páginas e fiquei com a impressão de que já tinha lido aquele livro. É Saramago igual a si mesmo. Há quem diga que todos os escritores escrevem sempre o mesmo livro... melhor assim, acho que vou ler este para matar saudades. Há uns 7 anos que não leio o senhor e fiquei cheio de inveja do meu namorado o mês passado quando ele leu a "História do cerco de Lisboa" pela primeira vez...
É que não há como a primeira vez...

A musica dos deuses

Ontem de manhã, num zapping ocasional apanhei a transmissão da missa em Fátima, a tempo de ver a Maria Bethania e a Joanna a cantarem em louvor da Virgem Maria.

Nunca deixa de me espantar a má qualidade da música que a nossa contemporâniedade reserva para exaltar as divindades. Ponho-me sempre a pensar como seria viver no tempo de Bach, em que a música não estava presente no quotidiano como está hoje (não se ouvia nos supermercados, nos taxis, nos elevadores,no barbeiro, etc...) Passavam-se os dias com sonoridades estéreis e depois, ao domingo, na igreja, Bach fornecia aos seus paroquianos um bocadito de paraíso e transcendência através da música. Seria overdose? haveria desmaios? Não sei... a única certeza é que, até hoje, o génio daquele humano (e de outros) pode ser entendido como uma prova da existência de Deus.

Mas o que aconteceu à música religiosa? Como é que se transformou num cliché estéril e insonso? Sinceramente, acho que foi o medo do êxtase.

Ontem à noite fui ao concerto dos Young Gods. É certo que o som estava demasiado alto e bastaram os Bizarra Locomotiva na primeira parte para ficar logo com os timpanos fodidos, mas, ainda assim, foi um grande concerto. A minha devoção a estes três músicos suiços passa precisamente pelo êxtase que a musica deles provoca em mim. É uma experiência divina. As catadupas de som com que bombardeiam os corpos de uma plateia convulsionada por pulos e dança fazem com que o individuo saia de si mesmo. E por momentos beijamos mesmo o sol. E ardemos. E estamo-nos nas tintas para que nos estejam a foder os tímpanos porque o que importa mesmo é o orgasmo. A entrega total a algo maior do que nós.

E é precisamente porque todo o êxtase tem um conotação sexual que o catolicismo castrou a música. E a arte em geral, convenhamos (que Bernini hoje se atreveria a fazer uma Santa Teresa daquelas?). Ou seja, tirou a chama ao génio humano, logo, escondeu a face de Deus.

PS: parabéns aos jovens deuses pelo seu aniversário. Que contem muitos (mesmo tendo em conta a imortalidade dos deuses)

quinta-feira, 3 de novembro de 2005

Je suis snob

Na eterna busca da playlist perfeita, adicionei ontem ao meu iPod "je suis snob" cantado pelo Boris Vian (esse mesmo!). Prestando atenção à letra facilmente concluí que sou mais de 50% snob — o que é optimo porque assim me posso identificar com algo tão viciantemente cantarolável! Só é pena eu não conseguir cantar com aquele inimitável e delicioso ar de perfeito enfado...

Carne assada

Os sinos das igrejas de Lisboa tocaram no dia 1 de Novembro pelas vítimas do terramoto de 1755. A missa das 6 encheu (a minha vizinha queixava-se ao marido que já só tinha encontrado lugar num banco lateral atrás duma coluna). Mas aposto que ninguém rezou pelas vítimas do auto-de-fé que a Inquisição fez logo de seguida, aproveitando a oportunidade para assar uns sodomitas, umas bruxas e uns judeus. Disso já ninguém (convenientemente) se lembra.

Nos nosso tempos modernos e civilizados, em que se desculpa os procedimentos da Inquisição e da Igreja Católica com o peso da história, pode parecer uma coisa bárbara, sacrificar humanos para apaziguar a ira divina. Mas a verdade é que ainda hoje os bodes expiatórios são os mesmos, a diferença é que não se assam na praça pública. Experimentem procurar no google por "blame homosexuals hurricane New Orleans": dá qualquer coisa como 268.000 resultados!

Escapa-me verdadeiramente à compreensão como é que alguém é capaz de acreditar num deus que, por se irritar com a intimidade sexual de uma minoria, mata e chateia a grande maioria. Ou deveremos acreditar que todas as vítimas de catástrofes naturais são sodomitas? E que os autos-de-fé eram uma maneira de ajudar deus no seu trabalho mal acabado?

terça-feira, 1 de novembro de 2005

Querido Antony

Foi bom passar mais uma noite na tua companhia. E é bom saber que há pessoas como tu no mundo capazes de redimir a humanidade. Thank youooouooou, thank yooououuuu...

no alentejo

Este fim de semana fomos visitar uma amiga minha que comprou uma casa alentejana, daquelas com paredes de terra caiada, quintal com rafeiro, gatos, galinhas e patos e um poço onde já se suicidaram duas pessoas. Não podia ser mais típico.
Há muito que não me aproximava tanto da ruralidade e é sempre bom fazer destas visitas para ficar sem dúvidas de que, por muito que goste do campo, eu sou um rato da cidade.