A minha relação com o Jaime foi, desde sempre, moldada pela tia Júlia. É claro que eu me apercebia disso, mas só nestas últimas semanas me apercebi do frio, calculado, propósito de tudo. E é isso que principalmente me tem perturbado, porque não creio ter compreendido ainda a verdadeira extensão daquilo que, receio, seja…
(espera, deixa-me tentar explicar outra coisa primeiro)
Esta manhã, no quiosque do aeroporto, enquanto olhava para os livros (velhos hábitos nunca se perdem, de resto como ia eu passar o tempo? A roer (ainda mais) as unhas?) assaltou-me uma recordação quando vi uma edição do Dom Quixote.
A forma como a tia Júlia nos fazia ler os clássicos era verdadeiramente insidiosa. Esse era um daqueles seus planos maquiavélicos de que, depois, ela própria se ria. Acontecia eu achar, casualmente, metido na minha mochila da escola entre os livros de Física e Matemática, as Fábulas de La Fontaine, ilustradas por Gustave Doré. E em vez de passar a tarde a fazer os trabalhos da escola, devorava aquelas histórias com animais sábios e tolos.
É claro que eu sabia que for a ela quem colocara o livro ali. Mas era um segredo. Só meu e dela. E depois, inevitavelmente, vinha um interrogatório. Subtil, mas impiedoso.
Estávamos a lanchar, e ela, cortando o queijo, diria:
“Diz o povo que comer muito queijo torna as pessoas esquecidas.”
E eu:
“Isso é verdade? “
“Não para os meninos bonitos. E tu és um menino bonito, não és, António?”
E eu ria-me.
“ Um corvo é que não sou de certeza, mas a tia é uma raposa! Das mais matreiras”
E riamo-nos os dois. E o Jaime ficava a olhar para nós a perguntar:
“O que foi? O que foi?”
“Explica-lhe lá…” diria ela, e eu passaria a tarde a contar as fábulas que lera ao Jaime, começando pela da raposa que elogiara a voz do corvo para que ele abrisse o bico e deixasse cair o queijo. Ela fica a ouvir-nos. Sorridente.
E , meses ou semanas depois, acharia eu, por acaso, na mesa da sala, uma cópia do Dom Quixote, ilustrado também por Gustave Doré, aberto na página em que Sancho Pança puxa o burro teimoso monte acima e olha desconsolado para Dom Quixote e Rocinante que cairam ridiculamente de pernas para o ar, derrotados pelos moinhos. Divertidíssimo, eu pegava no livro, lia umas quantas páginas, e tinha de o “roubar”. Punha-o na mochila e lia-o em casa, de uma assentada, ao longo de umas quantas noites. Foi assim que depois vieram “A Divina Comédia” e o “Paraíso Perdido”. Gustave Doré como perverso cúmplice da tia Júlia.
Mas o que me veio à memória no aeroporto foi uma conversa que tivémos anos depois, em que ela aproveitou para me tentar explicar uma coisa através do Dom Quixote. Tinhamos começado a falar de religião (que era assunto banal naquela casa) e depois de fé, e de crença, e no final a conversa descambou mais ou menos nisto, exemplo típico da lição de moral à la tia Júlia:
“António, as pessoas acreditam no que querem acreditar. Não podemos ridicularizar a fé de outras pessoas porque aquilo em que elas acreditam é a realidade para elas. A realidade é sempre uma construção mental do individuo. Lembras-te do Dom Quixote? Do episódio dos moinhos? Dom quixote e Sancho Pança passam por uns moinhos num monte e o Dom Quixote, convencido de que estes são gigantes, ataca-os e acaba espatifado e feito num oito, com o Sancho pança espantado com tanto ridículo.
Mas agora, imagina tu o oposto. Imagina que, de facto, os moinhos eram gigantes que, ao longe, Dom Quixote julga serem moinhos (a vista dele não devia decerto ser grande coisa) porque ele não acredita em gigantes. Seriam ambos certamente atacados pelos gigantes e Dom quixote, fraco como era, não conseguiria defender-se a si nem ao seu amigo. Dom Quixote talvez se safasse, porque, afinal de contas, tinha uma armadura, mas, os gigantes seriam certamente maus e impiedosos, pelo que nesta versão inversa, Sancho Pança não escaparia com vida e seria ele a jazer no chão, inevitavelmente morto.
Agora, o que achas preferível? Alguém submeter-se ao ridículo por acreditar em algo sobrenatural ou alguém ser incapaz de salvar um amigo da morte por não acreditar naquilo que tem em frente dos olhos?”
quinta-feira, 24 de novembro de 2005
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