quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

trivia do norte

Para quem não sabe, como eu não sabia - Björk significa Bétula. As bétulas são as últimas árvore do norte, ou seja, antes do ponto onde fica demasiado frio para existirem árvores, só há bétulas.

022 - Os Herdeiros

Felizmente a campainha tocou nesse momento e a tia Júlia foi abrir a porta sem ligar ao facto de eu ter corado até à ponta dos cabelos. Deixei-me estar na cozinha um bocado, mas quando percebi que tinham chegado visitas e que a tia Júlia as ia receber na sala, não me apeteceu ficar sozinho a sentir-me miserável.
O Jaime já tinha voltado da aula de judo e estava no quarto dele, sentado na cama, com os livros da escola espalhados à volta, embrenhado nos trabalhos de matemática.
“Sabes onde estive?”, perguntei-lhe.
“A Vó disse que tinhas ido ao sotão.”
“Já lá foste?”
“Claro que já lá fui!”
“Eu não sabia que havia um sotão.”
O Jaime levantou os olhos da matemática.
“É giro não, é? Tem montes de tralha.”
“Porque é que nunca ninguém me disse que havia uma biblioteca no sotão?”
“Julguei que sabias.”
“Não. Não sabia.”
“Isso é porque nunca prestas atenção a nada.”
E dito isto voltou a concentrar-se nos trabalhos de casa. Eu sentei-me na cadeira da secretária, a apurar uma fúria silenciosa. Sentia o livro debaixo do cinto das calças a magoar-me a barriga e só me apetecia pegar nele e atirá-lo à cabeça do Jaime.
Ele não tardou a estranhar o meu silêncio.
“O que foi?”
“Nada!”
Ele ficou a olhar para mim até que disse:
“Anda cá, vou-te mostrar o que aprendi hoje!”. Tirou os livros da cama e pôs-se de pé a saltitar no colchão.
“Não me apetece.”
“Vá lá! Não sejas maricas. Eu não te aleijo.”
Eu acedi porque não estava com cabeça para inventar uma desculpa para fugir áquilo. O Jaime tentava sempre ensinar-me todos os novos golpes de judo que aprendia.
Desta vez eu tinha de ficar atrás dele e tentar apertá-lo com uma espécie de abraço. E quando pus os braços à volta dele, e enquanto ele os ajeitava para que estivessem no sítio certo, o calor do corpo e o cheiro a lavado do cabelo dele encheram-me de uma tristeza súbita. Foi esse o problema. Eu devia estar a simular um ataque, mas estava mais a derreter-me de encontro ao corpo dele. Antes que pudesse sequer aperceber-me devidamente do que se passava, ele deu-me um puxão e eu voei por cima do ombro dele com tal velocidade que, em vez de aterrar no colchão, como era suposto, fui bater na secretária e depois nos tacos do chão. Ficou tudo negro por uns segundos e embora não sentisse nenhuma dor nesse momento, sabia que assim que me levantasse e o susto passasse me ia sentir todo partido, por isso deixei-me ficar deitado, na posição em que tinha caído e, como me sentia tão miserável, resolvi juntar umas lágrimas ao sangue que me escorria do nariz.
O Jaime andava histérico à minha volta. “Estás bem?! Estás bem?!” E passos no corredor anunciaram a chegada da tia Júlia que perguntava “O que é que se passa?! O que é que vocês fizeram agora?”. Com ela também vinha um homem, a visita a quem ela fora abrir a porta. Deitado no chão, eu só lhe via os pés, os sapatos negros brilhantes, as calças pretas. Foi para o ver que me resolvi levantar, em vez de continuar com a fita que tinha começado a fazer com a choradeira. Ele estava todo vestido de negro, exceptuando o revelador colarinho branco e o crucifixo dourado que lhe pendia de um cordão ao peito. E embora eu nunca tivesse conhecido nenhum padre, havia algo de perturbadoramente familiar na sua figura. Algo que, como te disse, levou todos estes anos até me voltar à memória.

terça-feira, 27 de dezembro de 2005

021 - Os Herdeiros

Voltemos àquela tarde.
Enquanto descia as escadas, de volta ao apartamento da tia Júlia, escondi o livro debaixo da camisola. Estava decicido a não mostrar fraqueza, orgulho ferido ou o que fosse.
Ela estava na cozinha, a arranjar feijão verde, e quando eu entrei levantou apenas os olhos por um segundo.
“Então? Achaste alguma coisa que te interessasse?”
“Não.”
“É natural. É demasiada tralha.”
“De onde vieram aqueles livros. Não são seus, pois não?”
“Agora são. Mas vieram de muitos sitios diferentes. A maioria foi herdada. A família do Augusto lia muito.”
“Porque não os dá?”
“Porque havia de o fazer? E a quem havia de os dar?”
“Não os vai ler todos, pois não? Podia doá-los a uma biblioteca.”
“Mas eu gosto de cuidar deles. E os livros encontram sempre os seus leitores. Tarde ou cedo eles chamam alguém para os ler. Nem que leve anos... ou séculos... Não te preocupes por eles estarem fechados. Não estão. Os livros têm uma vontade própria e só se deixam ler quando querem, não achas?”
“Não sei.”
“Trancaste a porta e trouxeste a chave?”
“Sim.”
“Então guarda-a. Fica essa para ti. E depois, quando acabares de ler esse livro que tens escondido na camisola, volta a pô-lo lá.”

sábado, 24 de dezembro de 2005

020 - Os Herdeiros

Desculpa, não ligues a esta riscalhada toda.
Aconteceu uma coisa estranha agora mesmo. Enquanto me tentava acalmar voltei a tentar ligar para o telemóvel do Jaime, como tinha feito todos os dias, várias vezes ao dia, a semana passada. Mas depois daquela noite, não sei porquê fiquei convencido que ele não o tinha, que talvez o tivesse perdido ou deixado nalgum sítio. E mesmo enquanto vinha para aqui, e enquanto corria a cidade e ligava para tudo o que é hotel em Salzburgo não me ocorreu voltar a ligar-lhe.
E não sei porquê, fiz isso agora. Ou antes, sei muito bem: desespero irracional.
Mas, em vez do sinal de desligado que estava à espera, o telefone tocou. Ninguém atendeu, mas só ouvir-lhe a voz no gravador de mensagens encheu-me de alegria. E fiquei tão surpreendido que não soube o que dizer e não deixei mensagem. Por isso voltei a ligar. Mas o telemóvel estava de novo desligado.
Não sei como interpretar isto. Ou ele tem o telefone e não quer mesmo falar comigo ou então outra pessoa estava a mexer nele. E porque desligaria alguém o telefone logo depois de eu tentar telefonar? Se era ele quem o tinha na mão então deve ter visto no écran que era eu quem estava a ligar. E se não era ele… oh merda!

Roí as unhas e comi o chocolate do mini bar (o preço é uma roubalheira, mas que se lixe). Já estou mais calmo.

019 - Os Herdeiros

Começou a nevar. Parei de escrever porque estava a ficar com caimbras na mão. Não me lembro de alguma vez ter escrito tanto à mão. Mas preciso disto. No momento em que fui para a janela encostar a testa ao vidro para me refrescar (estes austríacos são uns fanáticos do aquecimento central) o meu cérebro voltou ao caos dos últimos dias. É demasiado. Escrever ajuda-me a focar e sinto que as coisas que te devo dizer são coisas que eu próprio preciso saber, mesmo que sejam memórias minhas. A nossa condição de humanos é tão imperfeita… Fazer sentido das coisas não é o mesmo que recordá-las e muito menos vivê-las na pele...
Depois também estive a ver televisão, mas nem o canal porno (grátis!) me conseguiu distrair. É esta certeza de que o Jaime está em perigo que me deixa completamente desfeito. Como ele estava diferente em tua casa! Como pode uma semana mudar tanto assim uma pessoa?
Que pergunta…eu sei.
A mesma semana faz com que eu agora nem me reconheça no espelho. Esta barba, esta cicatriz.
Ele está em perigo e é por minha causa. Eu sei. Sinto-o. Porque outro motivo me esconderia tanta coisa? Se a seta com que me fez esta ferida me tivesse atingido no coração eu não duvidaria por um segundo de que foi lançada por amor. Felizmente ele tem boa pontaria... Esta ferida não é nada. O que me dói é que ele julgue que me pode proteger mantendo-me longe e ignorante do que se passa. Que pateta. Que idiota!
E como eu estou preocupado, Joana. É que ele é um bocado de mim, e não adianta que seja ele a sofrer em vez de mim. A dor é sentida pelos dois (tu viste como ele chorou por me ter ferido). E ele É meu irmão. MEU irmão!

- várias frases riscadas até se tornarem ilegíveis -

metereologia

Não há como dizer que vai chover para fazer sol... afinal quem passou a tarde da véspera de natal colado à playstation foi o meu namorado. Eu tive que me resignar a ler um livro e a escrever umas coisitas. Podem considerar isto a vingança do Pai Natal.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

herdeiros em ferias

Meus caros leitores:
Devido à epoca festiva que se aproxima, vou-me fechar em casa aproveitando para cultivar a mossa no sofa e exercitar os polegares nos comandos da playstation e da televisão. Isto porque embora até haja umas prendas que parecem livros debaixo da árvore lá em casa (coisas pesadas que quando se abanam não fazem barulho e logo não são nem DVDs nem jogos) o meu cérebro vai fechar para um bem merecido shut down>restart. Como tal, durante uns dias dar-se-á primazia ao estômago e a actividades que não exijam todos os dedos das mãos como a dactilografia (e se acham que eu podia escrever com apenas dois dedos, tambem podem passar a noite de 24 à espera do Pai Natal)
Como tal, votos de que passem uns dias aconchegados
Com manifestações de apreço,
Eu.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

Fondo mas nao sendo

Hoje apeteceu-me partilhar as capas que se pensaram para o meu primeiro livro. Aceitam-se comentários e votos na favorita (com justificação escrita). Não é preciso ter lido o livro para participar.

proposta 1



proposta 2



proposta 3



proposta 4



proposta 5

terça-feira, 20 de dezembro de 2005

um daqueles dias

É meio-dia e até agora a minha manhã foi passada a lidar com máquinas avariadas e gente incompetente (correios-banco-finanças). Em situações destas, as máquinas parecem-me ter uma grande vantagem sobre as pessoas: podemos dar-lhes murros (não que isso resolva o problema, mas fica-se ligeiramente mais satisfeito).

domingo, 18 de dezembro de 2005

018 - Os Herdeiros

Além disso, sentia também uma inédita mistura de impotência com fascínio. É que havia de tudo: livros novos misturados com velhos, ficção com tratados científicos e revistas entremeadas com enciclopédias encadernadas. Mas o verdadeiro espanto era a diversidade de línguas. Era uma autêntica babilónia. Porque não havia apenas livros em confortável inglês, françês, espanhol, italiano ou alemão… havia também livros nos alfabetos e línguas mais delirantes, começando por grego ou russo e indo do árabe para o geórgio, tailandês, indiano… e por aí fora até chinês e japonês. Não que eu conseguisse exactamente destinguí-los, ou soubesse sequer dar-lhes nomes como cirílico, cóptico ou aramaico, mas a minha cultura visual era suficiente para destinguir coisas que pareciam “grego” de outras que pareciam “árabe” e outras que pareciam “chinês”.
Fiquei por ali ainda algum tempo, hipnotizado por imagens, alfabetos e pela esmagadora constatação de que o mundo e a humanidade eram uma coisa muito grande. Senti-me minúsculo. Eu pouco mais era que um rato naquele sotão.
E depois senti uma certa raiva para com a tia Júlia. Era tão típico dela ter-me mandado para ali sózinho, sem a mínima explicação, sem o menor aviso. O que era isto? Uma lição de humildade para o rapazinho que apanhava porrada na escola porque lia mais do que os outros e tirava “excelentes” nos testes de português? Que gostava de assustar os professores citando Fernando Pessoa e fazendo metáforas com referências a Dante, Camões, Virgílio e Homero?
E por outro lado, eu tinha a certeza de que ela estaria lá em baixo, a contar quantos minutos eu passaria ali e não deixaria de olhar, com aquele seu falso desinteresse de coruja, para qualquer livro que eu decidisse levar para ler.
Levantei-me numa fúria e decidi que dali não levaria nada e que iria fingir que nada daquilo me interessava, só para a magoar.
Mas sabes, (eu sei que sabes), há um magnetismo tão grande nos livros… Se eu não percebia como na casa da tia Júlia os livros que se queria e precisava apareciam ao nosso lado, mais estranho ainda é o fenómeno que já vivi em incontáveis livrarias e bibliotecas. De, de repente, de entre toda uma enormidade de volumes, aparecer um que temos de agarrar, que sabemos, com uma certeza que só se equipara à certeza do amor, ter lá dentro tudo o que precisamos para dar descanso à mente e ao espírito.
Eu já tinha um pé no primeiro degrau da escada quando vi um livro que me fez parar. E depois de pegar nele, virá-lo, desfolhá-lo, cheirá-lo, amaldiçoei-me a mim próprio por não ser capaz de manter uma decisão simples. Tive de o levar.
Era um livro até bastante pequeno, bastante recente, bastante “barato”. Uma edição brasileira de um original inglês. O título era: “Decifrando as runas vikings”.

017 - Os Herdeiros

Eu sempre julgara que o prédio terminava no quarto andar, onde vivia o doutor Moreira, um juiz que raramente viamos e que só parecia existir no Natal, quando ia lá a casa agradecer o bolo rei que a tia Júlia lhe mandava por mim e pelo Jaime, o seu comité natalício que distribuia bolos pela vizinhança. É que, embora ela se divertisse a desconstruir o nosso Natal com as suas histórias de cometas, rituais pagãos saturninos, ou o eterno favorito “Pai Natal ou São Nicolau - o discípulo de Frankenstein”, ela fazia sempre várias fornadas de bolo-rei para oferecer. E não só para os vizinhos (e isso era outra coisa estranha, como ela conhecia tanta gente mesmo que raramente saísse de casa).
Mas lá estava, uma porta oposta à do apartamento do doutor Moreira, e, com a chave que a minha mão suada segurava, a fechadura abriu-se facilmente. Aí havia umas escadas, pintadas com tinta vermelha, vi eu, assim que acendi o interruptor ao lado da ombreira. E, lá em cima, uma única divisão a todo o tamanho do prédio, completamente atulhada de livros.
Não vale a pena imaginares um sotão escuro e poeirento, como costumam ser nas aventuras e mistérios. A tia Júlia gastara bastante dinheiro a pôr aquele sitio em condições, fiquei a saber, quando lhe expressei a minha admiração. Depois de comprar aos vizinhos as partes que lhes competiam no tempo em que fora uma arrecadação húmida e poeirenta, a tia Júlia reconstruira praticamente o sotão todo e instalara electricidade, um ar condicionado e usara materiais e vernizes a que os insectos não acham grande piada. E, como o pé direito era relativamente alto na maior parte do sotão, apesar da quantidade absurda de livros, tinha-se a sensação de estar num sítio espaçoso e arrumado. Não era para admirar. Fiquei também a saber depois que, semanalmente, a dona Otília passava ali uma manhã com o aspirador.
A minha primeira reacção, plantado ao cimo das escadas, foi de espanto. E depois senti-me como se tivesse ganho a lotaria. Aquilo eram livros para ler até ao fim da vida! Avancei por aqueles corredores de papel em êxtase salivante e reverência mística. Mas, em pouco mais de meia-hora, depois de explorar estantes, caixotes e pilhas de livros, a minha excitação inicial esmorecera até se tornar num profundo e quase magoado desapontamento. É que apenas uma pequeníssima parte daqueles livros era em português.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

pechinchas natalicias

A melhor novidade nos escaparates natalícios da FNAC (visitados ontem) eram as edições nice price dos discos da 4AD. Cocteau Twins a 7 euros é melhor preço que nas lojas de segunda mão. Até eu que já só ouços mp3 não resisti a finalmente comprar o "Heaven or Las Vegas" e fetichisticamente poder enfim olhar para a prateleira dos CD´s e ver a colecção completa.
É o verdadeiro espírito do natal - comprar prendas pechincha para si mesmo.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

016 - Os Herdeiros

No dia seguinte, antes de começar a minha “caça à bruxa” resolvi investigar a questão dos livros, que era uma coisa que me intrigava muito mais. Chegado da escola, sentei-me na mesa da sala e, com a tia Júlia na cozinha e o Jaime ainda nas aulas de Judo, em vez de fazer os trabalhos de casa de Matemática, resolvi contar os livros.
A sala estava, o que se podia chamar “arrumada”. A dona Otília estivera ali de manhã e, por onde ela passava, nada ficava torto, desalinhado ou poeirento. Num primeiro olhar, ninguém diria que esta divisão tinha livros. Mal nos apercebiamos de alguns sobre a mesa, outros sobre o piano, mais uns junto ao sofá, outros no parapeito da janela, outros… Comecei a contar. 123. Cento e vinte e três livros naquela sala. Eu nem acreditava. Estavam por todo o lado. Mal comecei a reparar neles a sala transformou-se num ninho de víboras. Havia livros em cima, por baixo, ao lado e atrás do sofá. Nas mesas, nas cadeiras, dentro dos móveis, e até, espanto dos espantos, alguns arrumados nas prateleiras.
Transferi a obsessão para o resto da casa. Cozinha, casas de banho, corredor, quartos, armários e despensa. 1232. Mil duzentos e trinta e dois.
É claro que o meu súbito frenesi não passou despercebido à tia Júlia. Enquanto eu contava os livros na despensa (onde fui descobrir a “Mensagem” de Fernando Pessoa entre as latas de grão e o acúcar) ela veio meter o nariz para me perguntar, “Estás à procura de alguma coisa?”
“Não, mas adivinhe o que achei entre as latas do grão”
“A Mensagem, de Fernando Pessoa”.
“Como é que sabe?!”
“Fui eu que o pus aí. O que estás a fazer?”
“Estou a contar os livros que tem em casa”.
“Oh, mas aqui em casa não há quase livros nenhuns! Eu detesto estar sempre a tropeçar neles e ponho tudo no sotão.”
“Há um sotão neste prédio?”
“Toma!” Tirou do bolso uma chave e deu-ma. “Vai lá ver o sotão e deixa-me a despensa em paz.”

mania da perseguiçao

Hoje no metro o pedinte-acordeonista fez um medley que me chamou a atenção:

somewhere over the rainbow - strangers in the night - the look of love

Olhei em volta e fiquei mais descansado ao perceber que só eu é que estava a achar aquilo muito gay.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

015 - Os Herdeiros

Comecei por perguntar à minha mãe, “o que faz a tia Júlia?”
“Que pergunta é essa? Ela não faz nada, quer dizer, trata da casa e de vocês e já é mais que muito.”
“Mas ela não faz mais nada? Nunca teve uma profissão?”
“Não.”
“Então e o dinheiro? Ela tem mais dinheiro do que nós.”
“António, não te quero a falar assim!” E pôs-se a olhar para mim de lado, a colher da sopa ainda na mão que lhe amparava o queixo. “A tia Júlia tem uma pensão que tira do que herdou da família e do marido”.
“Como é que sabes?”
“Como, como é que sei? Sei e pronto! Cala-te lá com isso e come a sopa. É muito feio falar de dinheiro à mesa.”
Nessa noite, já na cama, pus-me a pensar na vida da tia Júlia. Ela estava sempre em casa, ou pelo menos era essa a impressão que eu tinha, mas eu só passava lá as tardes e às vezes os serões. Mesmo o Jaime estava fora todas as manhãs, algumas tardes e, ao fim de semana, nós saíamos muitas vezes com a minha mãe. Também nas férias, fossemos nós nalguma excursão ou passeio, a tia Júlia recusava-se sempre a acompanhar-nos.
O que fazia ela? Duas vezes por semana ia lá a Dona Otília fazer as limpezas e engomar a roupa (e continua a ir), por isso, de afazeres domésticos, a tia Júlia pouco mais fazia que cozinhar e, de vez em quando, coser as meias do Jaime. Era frequente eu encontrá-la a ler, sentada num cadeirão do escritório ou da sala mas, embora ela parecesse sempre à vontade para falar de qualquer assunto, da cultura helénica à teoria quântica, passando pelas filosofias de Nietzsche, Kant e Santo Agostinho, a julgar pelo que costumava ter nas mãos, ela pouco mais lia que policiais da Agatha Christie.
Ao pensar nisso, ocorreu-me outra questão ainda mais estranha. De onde vinham os livros que apareciam lá por casa? É que não havia nenhuma grande estante ou biblioteca, nenhum tesouro de Próspero, e no entanto, naquela casa, tinham-me passado pelas mãos todas as comédias e tragédias de Shakespeare, todas as aventuras algumas vez escritas por Julio Verne, Tolkien, Enid Blyton e Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada. Já para não falar nos dicionários, enciclopédias e todo o género de tomos informativos ou fantásticos que apareciam de algum lado sempre que se precisava deles. O total oposto da minha casa, onde a minha mãe os ordenava com um militarismo alemão na estante que cobria uma parede inteira da sala.
Em casa da tia Júlia havia sempre livros, mais livros aliás que na biblioteca da escola, que eu achava sempre diminuta, e, no entanto, eu não me conseguia recordar de alguma vez os ter ido procurar a uma prateleira. Eles estavam em todo o lado mas não eram postos em sítio nenhum, simplesmente flutuavam por ali. E quando eu pensava na enorme quantidade deles que já tinha lido, mesmo com apenas 13 anos, não conseguia perceber onde eles se iam enfiar antes e depois de serem lidos.
Nessa noite não dormi.

Declaraçao de amor

Chegou hoje pelo correio, a tempo de se tornar no meu disco do ano, provavelmente um dos discos da minha vida.

É certo que, como um amigo meu os definiu, os The White Birch, soam como o sapo cocas a cantar canções de embalar. Mas é precisamente essa a magia da coisa. Eu não consigo imaginar nada mais bonito e reconfortante que o sapo cocas à beira da minha cama, a ajeitar-me os cobertores enquanto canta uma canção de embalar e depois a dar-me um beijinho na testa quando eu finalmente adormeço.

ou

Uma vez tive um sonho daqueles muito simbólicos: Eu andava ao longo de um muro de pedra, equilibrando-me à la humpty-dumpty enquanto andava cantava uma canção tão bonita que me fazia chorar. Mas eu chorava sangue e doía. Apesar disso, eu continuava a cantar porque a canção era a única coisa capaz de me consolar. Embora não me lembre como era a canção, era certamente muito parecida às músicas dos The White Birch.

www.thewhitebirch.no

e se fosse só a música... eis uma das letras que me arrepia todo:

Stand over me

What if I fall?
What if I fall too low to see?
If you can
Fall over me
And if you stand
And if you stand too tall to reach
If you can
Stand over me

Then in your hand
When you can catch me
In my flight
Fight over me
And if I fall
And if I crumble at your feet
Will you stand?
Stand over me

terça-feira, 13 de dezembro de 2005

a nostalgia dos livros lidos

Há livros que quando se olha para eles nos dão uma pequena pontada de dor por já não os podermos ler de novo pela primeira vez. Dói-me principalmente este, que foi agora reeditado com uma capa muito mais bonita do que a da edição que eu li há uns anos.

"Little,big" de John Crowley é um daqueles meteoros literários que, por passarem ao lado de tudo e de todos, se tornam ainda mais raros. Não conheço ninguém que tenha lido isto e bem tento impingi-lo a toda a gente mas ninguém lhe pega... Admito que é difícil, eu próprio tive de o ler em pequenas doses. É uma história bizarra mas envolvente e a linguagem são floreados que transformam as descrições dos momentos mais banais em feitos de pura magia. Infelizmente, não há tradução para português, mas mesmo que houvesse duvido que conseguisse fazer jus ao original.

Não é o livro da minha vida, mas é o suplente para essa função.


Madeira morta

Lá por casa os serões têm sido ocupados a ver os DVDs da primeira série de Deadwood, uma série da HBO que é uma deliciosa cábóiada telenovelesca onde nada de especial acontece mas que nos deixa pregados ao écran. O nosso personagem favorito é o mau da fita, dono do saloon/bordel/antro-de-vício-e-pecado, que não diz uma frase sem palavrão memorável. A minha favorita: "Would you like a blowjob while we talk?"

O bom da fita é algo desinteressante, mas causou algum furor lá no sofá nos breve segundos em que apareceu sem camisa, motivo que só por si já seria suficiente para ver o resto dos episódios....mas nós gostamos mesmo é dos diálogos... (pelo seu valor...humm... lírico).


Bad guy (esquerda) meets good guy (direita)

014 - Os Herdeiros

Sabes, eu sempre senti um ciúme secreto do Jaime. Por ser ele quem vivia com a tia Júlia. E é estranho estar a dizer, escrever isto pela primeira vez. Ainda mais nestas circunstâncias tão…oh, tão irónicas!
Não duvides, por favor, do meu amor pela minha mãe. Mas há sempre um apelo especial naquilo que não se possui. Eu invejei muito tudo o que o Jaime tinha. Os brinquedos - mais e mais caros do que os meus. A escola privada - com uniformes, bons professores e festas de Natal com teatro e prendas. As aulas de tiro com arco, judo e natação. Mas acima de tudo, o facto de, ao fim do dia, ele continuar na casa da tia Júlia, de dormir lá, de ser, de facto, aquela a sua casa. E de a tia Júlia ser mais dele do que minha.
Mas, é claro, isso eram tolices infantis, e eu sei o esforço que a tia Júlia sempre fez para nos tratar como iguais, mesmo com todas as diferenças de posse. E tão difícil que isso deve ter sido para ela, sei eu agora. Bastou-me olhar para ti, Joana.
Além disso, o Jaime sempre foi o mais generoso dos irmãos. O que tinha ele que eu não tivesse? Ele sempre se fez uma parte de mim. E vice versa.
Por isso eu tinha a certeza de que, se eu não sabia que as vizinhas chamavam bruxa à tia Júlia, menos o sabia ele. E foi por isso que resolvi descobrir o que se escondia de verdade por trás daquela história. Se algo houvesse naquilo que pudesse magoar o Jaime, devia primeiro magoar-me a mim.

013 - Os Herdeiros

Demorei mais tempo do que o costume a regressar a casa, pensando no que de facto aquilo queria dizer. Nós éramos todos tão pouco religiosos e supersticiosos. Principalmente a tia Júlia que, todos os natais, insistia em nos contar a “verdadeira” história de São Nicolau, pondo especial ênfase na parte das criancinhas esquartejadas dentro da salgadeira (que, admito, era a nossa parte favorita). Desmistificar, era a palavra de ordem para tudo o que a tia Júlia dizia e fazia. Porquê então aquele título de bruxa? Não era a palavra que me perturbava… o quê, então?
Ao fundo da rua, a Sé de Lisboa estava já iluminada e eu lembro-me de ter sido essa uma das vezes em que mais fortemente uma vertigem histórica se apossou de mim. É raro pensar com tanta consciência em tudo o que já se passou no sítio onde vivemos. É uma colina de lisboa que já viu fenícios, gregos, romanos, mouros, cristãos. As nossas ruas ficam entre a praça do Rossio, onde já se queimaram bruxas, judeus e sodomitas e a prisão do limoeiro onde, mais recentemente, se torturaram, não com menos requinte, intelectuais e liberais diversos. Ou seja, tudo pessoas com quem a nossa família reúne afinidades. E no entanto, como a minha mãe sempre me disse, que tempos abençoados estes em que vivemos, apesar de tudo, em que todos os livros do mundo estão à nossa disposição.
A minha mãe, que depois vinha abraçar-me e dizer-me. “Sabes a sorte que temos? Eu, que nasci depois da guerra, e tu, que nasceste depois da ditadura? És uma criança abençoada, António. Aproveita a sorte de teres nascido agora”. (Ela ainda repete isto, de vez em quando.)
Eu, naquele momento, saco cheio de batatas e cebolas, a caminho de casa, senti-me de facto previligiado, porque a minha mente, por segundos, quase conseguia ter a noção da enormidade do que se passara ali, naquela rua, naquela colina, naquela cidade, para que eu pudesse ir assim, tão despreocupado para casa, sem medo de bruxas. Uma vertigem histórica em que desfilava uma crescente erosão de preconceitos e superstições que permitiam que eu, nesse preciso momento, soubesse que os meus valores me permitiriam olhar lucidamente para este perturbante facto, de ter uma “bruxa” na família. E essa lucidez, que eu sempre tenho prezado tanto, devia-se, deve-se, precisamente, à tia Júlia.
Percebi nesse momento, que não era de facto a palavra “bruxa” que me perturbava, mas a implicação de que havia algo na vida da tia Júlia que me era desconhecido, talvez vedado. Ou, pior ainda, algo que ela ocultava de mim julgando que eu não fosse capaz de compreender.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

012 - Os Herdeiros

Se a minha mãe começara por me despejar à tarde na casa da tia Júlia fora por puro desespero. O horário dela na faculdade era bastante preenchido e o que ganhava não era suficiente para se poder dar ao luxo de me pôr num sitio que me ocupasse os tempos livres e onde se certificassem que eu fazia os trabalhos de casa. E, quando a tia Júlia me pôs a aprender piano, a única coisa que pediu à minha mãe foi autorização. E ela, nesses termos, não se lembrou de nenhum motivo contra.
A vida social da minha mãe era quase nula. Trabalho, casa, trabalho e, os tempos livres que não passava comigo, ocupava-os também com trabalho na sua vertente mais lúdica, lendo literatura alemã. Suponho que em tempos isso fora um prazer. Agora tornara-se só parte da profissão. Até o plano dela de me ensinar alemão era constantemente adiado porque, depois de passar grande parte do dia a dar aulas, em casa preferia ficar calada. Não tinha amigos e a família resumia-se a nós dois e uns primos dela, que, embora não fossem os tais ramos mortos da árvore genealógica, continuavam a viver na Alemanha e ela já nem postais de Natal lhes mandava.
Os serões em cada da tia Júlia, cuja frequência se foi progressivamente transformando num hábito diário, eram para ela um escape à monotonia e mediocridade académica. Ficava geralmente apenas a ouvir-nos mas, de vez em quando, observava que falávamos de coisas anormalmente adultas e culturais. E depois queixava-se de que, desde que deixara de seguir as novelas, não tinha mais assunto para conversas na universidade.
Eu nunca compreendera bem as reticências que ela punha em relação à tia Júlia porque, apesar de termos começado a passar muito tempo lá, ela nunca deixava de manter uma certa frieza que nem sequer lhe vinha dos genes alemães. A princípio, suponho que, de um modo inconsciente, liguei isso ao suicídio do meu pai mas, como esse era o assunto de que nunca se falava apesar de estar no cerne do nó que unira as nossas famílias, deixei que continuasse imerso nas névoas do tabu.
Eu já devia ter uns 13 anos quando, finalmente, me tive de confrontar com uma parte da vida da tia Júlia que, embora estivesse estado sempre à minha frente, eu nunca tinha verdadeiramente visto, ou tomado consciência que existisse, mas que clarificou os motivos porque a minha mãe mantinha o seu relacionamente com a tia Júlia nuns termos tão rígidos.
Aconteceu da maneira mais prosaica, ao fim de uma tarde em que a minha mãe me pedira para ir comprar batatas e cebolas à mercearia da esquina (que fica precisamente na esquina da rua entre a da tia Júlia e a nossa). Eu esperava para pagar, enquanto uma freguesa à minha frente falava com a dona do estabelecimento. Eu não seguia a conversa porque olhava para os chocolates, mas a certo ponto uma delas começou a falar de uma mulher do bairro que, pela descrição, eu identifiquei imediatamente como sendo a tia Júlia, embora o nome não fosse mencionado. E depois, referiu-se a ela como bruxa. E não era um insulto, ou mera difamação porque (e isto foi o que mais me surpreendeu), ao dizer a palavra, a sua voz baixou para um tom de grande respeito, ou reverência mesmo.

Sair do armario

Ontem fui ver "O leão, a feiticeira e o guarda-fato" o primeiro filme da série das Crónicas de Nárnia. Felizmente li o livro na idade certa de 12 anos e talvez por isso tenha ficado com a impressão de que o livro é melhor que o filme, mas, admito que o filme, mesmo que eu já o ache um pouco infantil, ainda assim é incrivelmente bom.
Houve no entanto uma coisa que me surpreendeu: não a assombrosa qualidade de alguns efeitos especiais (já ninguém se espanta com os avanços da tecnologia) mas sim a péssima qualidade de outros. Por um lado, fazem um milhão de animais e criaturas falantes que são 100% credíveis (mesmo quando se reconhece imediatamente as vozes do Rupert Everett e da Dawn French, mas isso é problema meu que sou demasiado gay nalgumas coisas), por outro, aparecem cenas que, aparentemente já não deviam colocar qualquer problema técnico, como as personagens humanas sobre um fundo falso, mas que estão tão mal feitas que até dói. O que se passou, rapazes?! tinham os computadores todos ocupados a fazer os renderings do leão e por isso nessas cenas mais simples tiveram que recortar a película com a tesourinha das unhas?
Mas o que importa é que foi uma noite bem passada, com uma história bem contada e muitos rebuçados para os olhos.
Há muito subtexto que se pode ler naquilo, desde o leão se parecer com Jesus e o Ricardo coração de leão, até à interpretação mais esticada da necessidade de sair do armário para se entrar no mundo real.
Eu da minha parte, admito que há algumas coisas dentro do armário que deixam muitas saudades. O fauno, por exemplo ;-)

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

Ainda ha boas noticias

Hoje, nos jornais internacionais apareceram as primeiras fotografias e desenhos de um novo animal recentemente descoberto nas selvas de Borneo. Um bicho que é qualquer coisa entre o gato e a raposa.
É claro que a notícia tem destaque porque é um animal grande e verdadeiramente curioso, mas só na última década e apenas nas selvas de Borneo foram descobertas 361 espécies.
Notícias como estas são muito mais interessantes e relevantes que as dos dinossauros das presidenciais portuguesas, acho eu, que são espécies que já deviam estar extintas sem remorso.

011 - Os Herdeiros

As aulas eram às terças e quintas, supostamente durante as horas em que o Jaime ainda estivesse a fazer os trabalhos dele. Mas, em breve, era ele quem ficava à nossa espera, espreitando à porta da sala para ver se ainda íamos demorar muito, intrigado com os estranhos movimentos de solfejo que eu fazia enquanto entoava penosamente o nome das notas. E como a tia Júlia acabou por pagar horas extra à Runa, que não se importava nada de extender as aulas até ao limite da minha paciência (que era grande), passou a ser o Jaime a ficar impaciente e a entreter-se atazinando a tia Júlia para lá do razoável.
O castigo dele tomou a forma de aulas de tiro com arco. Na altura ninguém se questionou porquê, parecia apenas uma boa maneira de tirar o Jaime de casa às terças e quintas à tarde. Eu roí-me de inveja. É muito mais cool ser o Robin dos Bosques do que o Chopin. Quando ele apareceu lá em casa pela primeira vez com o arco e as flechas que ia usar nas aulas ficámos uma boa hora a olhar para elas, pousadas em cima da cama, numa reverência histérica e babada. É claro que quisémos brincar aos índios e cowboys mas a tia Júlia advertiu-nos logo que aquilo não era um brinquedo e que se nos ouvisse a ulular pelos corredores era ela quem nos arrancava o escalpe. Aquilo era uma actividade séria. Um desporto. Uma das provas olímpicas.
E para enfatizar a importância daquilo, enfadou-nos com a história das olimpíadas.
A Runa, por seu lado, apercebendo-se da minha súbita falta de concentração nas aulas, voltou a trazer discos. E ouvimos a abertura de “Guilherme Tell” de Rossini enquanto ela me contava a história dessa ópera. Que eu contei ao Jaime, à tia Júlia e à minha mãe nessa noite, enquanto ouviamos o disco, que eu pedira emprestado à Runa, e comiamos a sobremesa.
Essa foi a primeira noite em que a minha mãe acedeu a ficar para jantar. Na altura, eu era demasiado novo para entender pequenas subtilezas sociais, mas agora sei que essa noite foi a primeira grande vitória da tia Júlia. Conseguira finalmente juntar-nos aos quatro e começar qualquer coisa parecida com um lar.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

010 - Os Herdeiros

A tia Júlia não fazia promessas em vão. Quando cheguei da escola, no dia seguinte, uma senhora alta, com um olhar penetrante esperava por mim na sala. A tia Júlia apresentou-nos e eu fiquei ainda mais intimidado ao saber que a minha professora era norueguesa. Apesar do seu sorriso e do sotaque divertido, aquilo não prometia vir a ter piada nenhuma, e o piano, regressado à sua habitual verticalidade, parecia rir-se de mim com os seus dentes restaurados. O Jaime fora recambiado para o quarto dele e depois também a tia Júlia se retirou para que eu pudesse ter a minha primeira aula de música. Porque, embora o plano fosse ensinarem-me a tocar piano, eu primeiro tinha de aprender música. Nas primeiras aulas pouco toquei. A Runa (era o nome da professora) teve de começar por me ensinar a ler e a escrever música, com enorme paciência. Durante semanas mergulhou-me no mundo dos compassos, claves, mínimas, semínimas e colcheias. Era um conceito interessante, como se podia escrever num papel os sons que se ouviam, mas aqueles símbolos não significavam nada para mim. A minha relação com aquilo era totalmente abstacta. E quando ela se apercebeu isso, compreendeu que tinha de começar por me fazer ouvir música. Por isso, durante algumas aulas pouco mais fizémos que dedicar-nos à audição de discos que ela trazia, começando por clássicos agradáveis e didáticos como “Pedro e o Lobo” de Prokofiev e “The young persons guide to the orchestra” de Britten, que ela ia comentando. Mas por fim chegou o momento que me marcaria a fogo. Quando eu, arrepiadinho até aos ossos pela abertura da “Carmina Burana” de Carl Orff, tive de lhe perguntar para confirmar:
“Mas isto está escrito? É possível ler ISTO de um papel?”
Ela deu uma gargalhada, mas depois, percebendo o que eu queria dizer, assentiu seriamente com a cabeça. E foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que me pôs na disposição de aprender tudo o que ela tivesse para me ensinar.
O Fortuna, velut luna…

sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

Ainda nao foi desta

Há uma grande vantagem em ter uma profissão que traz dinheiro regularmente para casa porque, se eu andasse só nisto de ser artista, estava bem tramado. Assim, posso-me dar ao luxo de, como diria a Madonna, não comprometer a minha integridade artística, e até me divertir um bocadito quando me dão uma nega.

Hoje recebi um simpatiquíssimo email de outra editora a quem entreguei a maquete do meu livro de contos. Devo confessar que teria ficado mais espantado se o tivessem aceite, por isso até me diverti com os comentários dos dois consultores literários da editora que me foram enviados. Basicamente, ambos dizem que o texto está muito bem escrito e que tem "mérito literário" (e só isto já chegaria para me pôr de bom humor para as próximas semanas) mas que a temática... bem, deixo-vos uma citação da carta que um desses consultores escreveu a esse editor e que li com surpreendido agrado e até prefiro entender como elogiosa porque, vivendo eu um pouco desfasado da realidade, tendo a esquecer-me do impacto dos meus temas:

"Caro Editor X:
O texto que me enviou é daqueles que vejo, infelizmente, muito divulgados noutros países como os EUA, e não tanto, graças a Deus, entre nós. Não sei se a editora X está a pensar mudar o tipo de selecção a que nos habituou: sei que se o fizer perderá seguramente uma boa parte do seu público. É bem certo que, do ponto de vista estritamente literário, tenho visto bem pior pois o livro é bem escrito, e eu diria até que poderia ser lido com agrado. No entanto desaconselho vivamente a sua publicação. [...]"

Tenho de admitir que a aura de autor maldito que comentários destes me poderiam pôr em cima não me desagrada. Mas é um desperdício nesta fase! Espero que, no dia em que o livro venha a ver a luz do dia, haja antes um jornalista a escrever coisas destas para o livro vender muito e eu me poder tornar num verdadeiro autor maldito... mas milionário (que é o que interessa!).

quinta-feira, 1 de dezembro de 2005

009 - Os Herdeiros

No dia seguinte, ao chegar da escola, dei com o piano totalmente esventrado na sala. O Jaime já tinha preparado uma platéia, dispondo os cadeirões de frente para o evento e sentara-se, em pasmo absoluto, a ver o afinador trabalhar.
Foi uma das tardes mais fascinantes de que me lembro. O senhor Pereira, que passaria a vir fazer-nos visitas mensais, para além de se dar ao trabalho de limpar todo o interior do piano, substituir martelos, feltros, molas e cordas, deu-se ao trabalho de nos explicar tudo o que fazia. E não se cansava de dizer, é um milagre, o estado disto. Mas, quando a tia Júlia lhe explicou provavelmente nunca ninguém o tocara, ficou-se a repetir, ah bem, ah bem… E assim ficámos a saber como o comprimento das cordas define a altura dos sons, para que serviam de facto os pedais (ver a maquinaria toda a sair do sítio quando se carregava neles era entusiasmante) e todo o complexo movimento mecânico que transmite, com espantosa precisão, a pressão das teclas aos martelos que batem nas cordas.
Fomos excepcionalmente libertos dos nossos deveres para observar todo o procedimento cirúrgico, com mais motivo ainda quando começou a afinação das cordas. Foi aí que percebemos que éramos meros amadores a fazer gemer o piano. O senhor Pereira suava profusamente alternando o esforço de puxar as cordas com o martelar intenso das cordas e os toques de diapasão (fascinante pedacinho de metal que, por precisar de tanta explicação, aumentou ainda mais a féria do senhor Pereira, que era pago à hora). O barulho para além de insuportável era irritantemente repetitivo. A tia Júlia até se lembrou subitamente de ir às compras e a vizinha de baixo veio bater à porta para saber o que se passava.
Mas no final, o senhor Pereira, embora suado, coberto de pó e já farto das nossas perguntas incessantes e dasastrada vontade de ajudar, brindou-nos com um pequeno concerto.
Abriu com uma escala que correu o piano de cima abaixo e que pôs o instrumento a ressoar tão harmoniosamente que o Jaime até me disse baixinho, ao ouvido: “ É como se fosse a Madalena, depois de exorcizada dos sete demónios”. E eu concordei, sem sequer me rir. Aquilo era pura e milagrosa magia. Era como se fosse outro piano.
Depois, foram as mãos do senhor Pereira que sofreram uma transformação, deixando de ser umas salsichas brutas e peludas que martelavam as teclas numa barulheira infernal para as acariciar velozmente com sons que só podiam ser uma pura manifestação de divindades celestes.
A tia Júlia nessa altura veio sentar-se ao nosso lado. E, quando o senhor Pereira acabou, tirou-me o sorriso da cara informando-me que no dia seguinte eu ia começar a aprender a tocar piano. Eu fiquei pregado no chão, esmagado pela enormidade do que me era pedido.