No dia seguinte, ao chegar da escola, dei com o piano totalmente esventrado na sala. O Jaime já tinha preparado uma platéia, dispondo os cadeirões de frente para o evento e sentara-se, em pasmo absoluto, a ver o afinador trabalhar.
Foi uma das tardes mais fascinantes de que me lembro. O senhor Pereira, que passaria a vir fazer-nos visitas mensais, para além de se dar ao trabalho de limpar todo o interior do piano, substituir martelos, feltros, molas e cordas, deu-se ao trabalho de nos explicar tudo o que fazia. E não se cansava de dizer, é um milagre, o estado disto. Mas, quando a tia Júlia lhe explicou provavelmente nunca ninguém o tocara, ficou-se a repetir, ah bem, ah bem… E assim ficámos a saber como o comprimento das cordas define a altura dos sons, para que serviam de facto os pedais (ver a maquinaria toda a sair do sítio quando se carregava neles era entusiasmante) e todo o complexo movimento mecânico que transmite, com espantosa precisão, a pressão das teclas aos martelos que batem nas cordas.
Fomos excepcionalmente libertos dos nossos deveres para observar todo o procedimento cirúrgico, com mais motivo ainda quando começou a afinação das cordas. Foi aí que percebemos que éramos meros amadores a fazer gemer o piano. O senhor Pereira suava profusamente alternando o esforço de puxar as cordas com o martelar intenso das cordas e os toques de diapasão (fascinante pedacinho de metal que, por precisar de tanta explicação, aumentou ainda mais a féria do senhor Pereira, que era pago à hora). O barulho para além de insuportável era irritantemente repetitivo. A tia Júlia até se lembrou subitamente de ir às compras e a vizinha de baixo veio bater à porta para saber o que se passava.
Mas no final, o senhor Pereira, embora suado, coberto de pó e já farto das nossas perguntas incessantes e dasastrada vontade de ajudar, brindou-nos com um pequeno concerto.
Abriu com uma escala que correu o piano de cima abaixo e que pôs o instrumento a ressoar tão harmoniosamente que o Jaime até me disse baixinho, ao ouvido: “ É como se fosse a Madalena, depois de exorcizada dos sete demónios”. E eu concordei, sem sequer me rir. Aquilo era pura e milagrosa magia. Era como se fosse outro piano.
Depois, foram as mãos do senhor Pereira que sofreram uma transformação, deixando de ser umas salsichas brutas e peludas que martelavam as teclas numa barulheira infernal para as acariciar velozmente com sons que só podiam ser uma pura manifestação de divindades celestes.
A tia Júlia nessa altura veio sentar-se ao nosso lado. E, quando o senhor Pereira acabou, tirou-me o sorriso da cara informando-me que no dia seguinte eu ia começar a aprender a tocar piano. Eu fiquei pregado no chão, esmagado pela enormidade do que me era pedido.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2005
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