As aulas eram às terças e quintas, supostamente durante as horas em que o Jaime ainda estivesse a fazer os trabalhos dele. Mas, em breve, era ele quem ficava à nossa espera, espreitando à porta da sala para ver se ainda íamos demorar muito, intrigado com os estranhos movimentos de solfejo que eu fazia enquanto entoava penosamente o nome das notas. E como a tia Júlia acabou por pagar horas extra à Runa, que não se importava nada de extender as aulas até ao limite da minha paciência (que era grande), passou a ser o Jaime a ficar impaciente e a entreter-se atazinando a tia Júlia para lá do razoável.
O castigo dele tomou a forma de aulas de tiro com arco. Na altura ninguém se questionou porquê, parecia apenas uma boa maneira de tirar o Jaime de casa às terças e quintas à tarde. Eu roí-me de inveja. É muito mais cool ser o Robin dos Bosques do que o Chopin. Quando ele apareceu lá em casa pela primeira vez com o arco e as flechas que ia usar nas aulas ficámos uma boa hora a olhar para elas, pousadas em cima da cama, numa reverência histérica e babada. É claro que quisémos brincar aos índios e cowboys mas a tia Júlia advertiu-nos logo que aquilo não era um brinquedo e que se nos ouvisse a ulular pelos corredores era ela quem nos arrancava o escalpe. Aquilo era uma actividade séria. Um desporto. Uma das provas olímpicas.
E para enfatizar a importância daquilo, enfadou-nos com a história das olimpíadas.
A Runa, por seu lado, apercebendo-se da minha súbita falta de concentração nas aulas, voltou a trazer discos. E ouvimos a abertura de “Guilherme Tell” de Rossini enquanto ela me contava a história dessa ópera. Que eu contei ao Jaime, à tia Júlia e à minha mãe nessa noite, enquanto ouviamos o disco, que eu pedira emprestado à Runa, e comiamos a sobremesa.
Essa foi a primeira noite em que a minha mãe acedeu a ficar para jantar. Na altura, eu era demasiado novo para entender pequenas subtilezas sociais, mas agora sei que essa noite foi a primeira grande vitória da tia Júlia. Conseguira finalmente juntar-nos aos quatro e começar qualquer coisa parecida com um lar.
terça-feira, 6 de dezembro de 2005
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