A tia Júlia não fazia promessas em vão. Quando cheguei da escola, no dia seguinte, uma senhora alta, com um olhar penetrante esperava por mim na sala. A tia Júlia apresentou-nos e eu fiquei ainda mais intimidado ao saber que a minha professora era norueguesa. Apesar do seu sorriso e do sotaque divertido, aquilo não prometia vir a ter piada nenhuma, e o piano, regressado à sua habitual verticalidade, parecia rir-se de mim com os seus dentes restaurados. O Jaime fora recambiado para o quarto dele e depois também a tia Júlia se retirou para que eu pudesse ter a minha primeira aula de música. Porque, embora o plano fosse ensinarem-me a tocar piano, eu primeiro tinha de aprender música. Nas primeiras aulas pouco toquei. A Runa (era o nome da professora) teve de começar por me ensinar a ler e a escrever música, com enorme paciência. Durante semanas mergulhou-me no mundo dos compassos, claves, mínimas, semínimas e colcheias. Era um conceito interessante, como se podia escrever num papel os sons que se ouviam, mas aqueles símbolos não significavam nada para mim. A minha relação com aquilo era totalmente abstacta. E quando ela se apercebeu isso, compreendeu que tinha de começar por me fazer ouvir música. Por isso, durante algumas aulas pouco mais fizémos que dedicar-nos à audição de discos que ela trazia, começando por clássicos agradáveis e didáticos como “Pedro e o Lobo” de Prokofiev e “The young persons guide to the orchestra” de Britten, que ela ia comentando. Mas por fim chegou o momento que me marcaria a fogo. Quando eu, arrepiadinho até aos ossos pela abertura da “Carmina Burana” de Carl Orff, tive de lhe perguntar para confirmar:
“Mas isto está escrito? É possível ler ISTO de um papel?”
Ela deu uma gargalhada, mas depois, percebendo o que eu queria dizer, assentiu seriamente com a cabeça. E foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que me pôs na disposição de aprender tudo o que ela tivesse para me ensinar.
O Fortuna, velut luna…
segunda-feira, 5 de dezembro de 2005
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