Se a minha mãe começara por me despejar à tarde na casa da tia Júlia fora por puro desespero. O horário dela na faculdade era bastante preenchido e o que ganhava não era suficiente para se poder dar ao luxo de me pôr num sitio que me ocupasse os tempos livres e onde se certificassem que eu fazia os trabalhos de casa. E, quando a tia Júlia me pôs a aprender piano, a única coisa que pediu à minha mãe foi autorização. E ela, nesses termos, não se lembrou de nenhum motivo contra.
A vida social da minha mãe era quase nula. Trabalho, casa, trabalho e, os tempos livres que não passava comigo, ocupava-os também com trabalho na sua vertente mais lúdica, lendo literatura alemã. Suponho que em tempos isso fora um prazer. Agora tornara-se só parte da profissão. Até o plano dela de me ensinar alemão era constantemente adiado porque, depois de passar grande parte do dia a dar aulas, em casa preferia ficar calada. Não tinha amigos e a família resumia-se a nós dois e uns primos dela, que, embora não fossem os tais ramos mortos da árvore genealógica, continuavam a viver na Alemanha e ela já nem postais de Natal lhes mandava.
Os serões em cada da tia Júlia, cuja frequência se foi progressivamente transformando num hábito diário, eram para ela um escape à monotonia e mediocridade académica. Ficava geralmente apenas a ouvir-nos mas, de vez em quando, observava que falávamos de coisas anormalmente adultas e culturais. E depois queixava-se de que, desde que deixara de seguir as novelas, não tinha mais assunto para conversas na universidade.
Eu nunca compreendera bem as reticências que ela punha em relação à tia Júlia porque, apesar de termos começado a passar muito tempo lá, ela nunca deixava de manter uma certa frieza que nem sequer lhe vinha dos genes alemães. A princípio, suponho que, de um modo inconsciente, liguei isso ao suicídio do meu pai mas, como esse era o assunto de que nunca se falava apesar de estar no cerne do nó que unira as nossas famílias, deixei que continuasse imerso nas névoas do tabu.
Eu já devia ter uns 13 anos quando, finalmente, me tive de confrontar com uma parte da vida da tia Júlia que, embora estivesse estado sempre à minha frente, eu nunca tinha verdadeiramente visto, ou tomado consciência que existisse, mas que clarificou os motivos porque a minha mãe mantinha o seu relacionamente com a tia Júlia nuns termos tão rígidos.
Aconteceu da maneira mais prosaica, ao fim de uma tarde em que a minha mãe me pedira para ir comprar batatas e cebolas à mercearia da esquina (que fica precisamente na esquina da rua entre a da tia Júlia e a nossa). Eu esperava para pagar, enquanto uma freguesa à minha frente falava com a dona do estabelecimento. Eu não seguia a conversa porque olhava para os chocolates, mas a certo ponto uma delas começou a falar de uma mulher do bairro que, pela descrição, eu identifiquei imediatamente como sendo a tia Júlia, embora o nome não fosse mencionado. E depois, referiu-se a ela como bruxa. E não era um insulto, ou mera difamação porque (e isto foi o que mais me surpreendeu), ao dizer a palavra, a sua voz baixou para um tom de grande respeito, ou reverência mesmo.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2005
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário