segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

021 - Os Herdeiros (versao revista)

Voltemos àquela tarde.
Enquanto descia as escadas, de volta ao apartamento da tia Júlia, escondi o livro debaixo da camisola. Estava decicido a não mostrar fraqueza, orgulho ferido ou o que fosse.
Ela estava na cozinha, a arranjar feijão verde, e quando eu entrei levantou apenas os olhos por um segundo.
“Então? Achaste alguma coisa que te interessasse?”
“Não.”
“É natural. É demasiada tralha.”
“De onde vieram aqueles livros. Não são seus, pois não?”
“Agora são. Mas vieram de muitos sitios diferentes. A maioria foi herdada. A família do Augusto lia muito.”
“Porque não os dá?”
“Porque havia de o fazer? E a quem havia de os dar?”
“Não os vai ler todos, pois não? Podia doá-los a uma biblioteca.”
“Mas eu gosto de cuidar deles. E os livros encontram sempre os seus leitores. Tarde ou cedo eles chamam alguém para os ler. Nem que leve anos... ou séculos... Não te preocupes por eles estarem fechados. Não estão. Os livros têm uma vontade própria e só se deixam ler quando querem, não achas?”
“Não sei.”
“Trancaste a porta e trouxeste a chave?”
“Sim.”
“Então guarda-a. Fica essa para ti. E depois, quando acabares de ler esse livro que tens escondido na camisola, volta a pô-lo lá.”
Felizmente a campainha tocou nesse momento e a tia Júlia foi abrir a porta sem ligar ao facto de eu ter corado até à ponta dos cabelos.
Deixei-me estar na cozinha um bocado, mas quando percebi que tinham chegado visitas e que a tia Júlia as ia receber na sala, não me apeteceu ficar sozinho a sentir-me miserável. O Jaime já tinha voltado da aula de judo e estava no quarto dele, sentado na cama, com os livros da escola espalhados à volta, embrenhado nos trabalhos de matemática.
“Sabes onde estive?”, perguntei-lhe.
“A Vó disse que tinhas ido ao sotão.”
“Sabias do sotão e já lá foste?”
“Claro que já lá fui!”
“Eu não sabia que havia um sotão.”
O Jaime levantou os olhos da matemática.
“É giro não, é? Tem montes de tralha.”
“Porque é que nunca ninguém me disse que havia uma biblioteca no sotão?”
“Julguei que sabias.”
“Não. Não sabia.”
“Isso é porque nunca prestas atenção a nada.”
E dito isto voltou a concentrar-se nos trabalhos de casa. Eu sentei-me na cadeira da secretária, a apurar uma fúria silenciosa. Sentia o livro debaixo do cinto das calças a magoar-me a barriga e só me apetecia pegar nele e atirá-lo à cabeça do Jaime.
Ele não tardou a estranhar o meu silêncio.
“O que foi?”
“Nada!”
Ele ficou a olhar para mim até que disse:
“Anda cá, vou-te mostrar o que aprendi hoje!”. Tirou os livros da cama e pôs-se de pé a saltitar no colchão.
“Não me apetece.”
“Vá lá! Não sejas maricas. Eu não te aleijo.”
Eu acedi porque não estava com cabeça para inventar uma desculpa para fugir áquilo. O Jaime tentava sempre ensinar-me todos os novos golpes de judo que aprendia. Desta vez eu tinha de ficar atrás dele e tentar apertá-lo com uma espécie de abraço. E quando pus os braços à volta dele, e enquanto ele os ajeitava para que estivessem no sítio certo, o calor do corpo e o cheiro a lavado do cabelo dele encheram-me de uma tristeza súbita. Foi esse o problema. Eu devia estar a simular um ataque, mas estava mais a derreter-me de encontro ao corpo dele. Antes que pudesse sequer aperceber-me devidamente do que se passava, ele deu-me um puxão e eu voei por cima do ombro dele com tal velocidade que, em vez de aterrar no colchão, como era suposto, fui bater na secretária e depois nos tacos do chão. Ficou tudo negro por uns segundos e embora não sentisse nenhuma dor nesse momento, sabia que assim que me levantasse e o susto passasse me ia sentir todo partido, por isso deixei-me ficar deitado, na posição em que tinha caído e, como me sentia algo miserável, resolvi juntar uns gemidos e umas lágrimas ao sangue que me escorria do nariz.
O Jaime, alarmado, ajoelhou-se no colchão e debruçou-se repetindo incessantemente, “Estás bem?! Estás bem?!” E passos no corredor anunciaram a chegada da tia Júlia que perguntava “O que é que se passa?! O que é que vocês fizeram agora?”. Com ela vinha também um homem, a visita a quem ela fora abrir a porta. Deitado no chão, eu só lhe via os pés, os sapatos negros brilhantes, as calças pretas. Foi para o ver melhor que me resolvi levantar, em vez de continuar com a choradeira e a fita que tinha começado a fazer. Ele estava todo vestido de negro, exceptuando o revelador colarinho branco e o crucifixo dourado que lhe pendia de um cordão ao peito. E embora eu nunca tivesse conhecido nenhum padre, havia algo de perturbadoramente familiar na sua figura. Algo que, como te disse, levou todos estes anos até me voltar à memória.

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