Ao chegar da escola, na tarde seguinte, encontrei uma senhora alta, de penetrantes olhos azuis, à minha espera na sala. Fiquei ainda mais intimidado depois das apresentações. Ela era estrangeira, norueguesa. Apesar do seu sorriso e do sotaque divertido, aquilo não prometia vir a ter piada nenhuma, e o piano, regressado à sua habitual verticalidade, parecia rir-se de mim com os seus dentes restaurados. O Jaime fora recambiado para o quarto dele e depois também a tia Júlia se retirou para que eu pudesse ter a minha primeira aula de música. Porque, embora o plano fosse ensinarem-me a tocar piano, eu primeiro tinha de aprender música, por isso, nas primeiras aulas pouco toquei. A Runa (era o nome da professora) teve de começar por me ensinar a ler e a escrever música, com enorme paciência. Durante semanas apresentou-me o mundo das pautas, compassos, claves, mínimas, semínimas e colcheias. Era um conceito interessante, como se podia escrever num papel os sons que se ouviam, mas aqueles símbolos não significavam nada para mim. A minha relação com a escrita musical era totalmente abstacta, mesmo que ela tocasse as notas no piano. E quando ela se apercebeu disso, compreendeu que tinha de começar por me fazer ouvir música e por isso, durante algumas aulas, pouco mais fizémos que dedicar-nos à audição de discos que ela trazia. Começámos por clássicos agradáveis e didáticos como “Pedro e o Lobo” de Prokofiev e “The young persons guide to the orchestra” de Britten, que ela ia comentando, mas por fim chegou o momento que me marcaria a fogo. Quando eu, arrepiadinho até aos ossos pela abertura da “Carmina Burana” de Carl Orff, tive de lhe perguntar para confirmar:
“Mas isto está escrito? É possível ler ISTO de um papel?”
Ela deu uma gargalhada, mas depois, percebendo o que eu queria dizer, assentiu seriamente com a cabeça. E foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que me pôs na disposição de aprender tudo o que ela tivesse para me ensinar.
O Fortuna, velut luna…
segunda-feira, 16 de janeiro de 2006
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