Foi essa a minha, nossa, primeira ida a Sintra. Tínhamos 16 anos.
E nem por um momento parei para me questionar porque é que os nossos incontáveis passeios de fim de semana nunca tinham incluido Sintra. A tia Júlia diria, “Marta, porque não levas os miúdos a Tomar / Conímbriga / Alcobaça / Mértola / Évora / Marvão / etc / etc…” E lá nos montávamos nós no Opel da minha mãe para ir ver as maravilhas históricas de Portugal. Até Espanha, às vezes. Mas Sintra… ela nunca referira Sintra, mesmo sendo logo ali, a escassos quilómetros de Lisboa.
Outra diferença relevante em relação a outros passeios foi a total ausência de lição histórica. Normalmente, na noite antes de viajarmos, a tia Júlia fazia um bolo, chá, e sentávamo-nos a ouvi-la falar dos túmulos de D. Pedro e Inês de Castro, de mosaicos e termas romanas, de ruínas, restauros, castelos, mosteiros, antas, igrejas, capelinhas e o que mais houvesse para saber, ver, sentir e pensar em certos sítios. Tanto que era como lá estar ainda antes de ir.
Porque depois ela nunca vinha connosco, mesmo que fossemos a sítios onde ela nunca tinha ido (que por acaso eram poucos, mas mesmo assim…). Ela tinha a perfeita noção do quanto dominava as nossas vidas e suponho que essa era a sua maneira de nos libertar. Apesar disso, nós sabiamos que se regressássemos sem ter visto um chafariz, um pelourinho, que ela tivesse referido, teriamos de enfrentar o seu olhar desapontado. E isso, simplesmente, não se fazia. Nem uns pastéis de tentúgal, ou umas barrigas de freira, serviam, aprendemos, para lhe apaziguar os resmungos, quando nos falhava um ponto do itinerário.
Mas desta vez, sobre Sintra, nada.
Sorria simplesmente por nos ver tão entusiasmados. Iamos acampar pela primeira vez. O padre Matos ficara de nos arranjar a tenda e os sacos-cama, mas fomos comprar mochilas, e comida e lanternas e canivetes. Desde que o Jaime comprara o arco e as flechas que não tinhamos andado tão histéricos pela casa.
A minha mãe, que saíra mais cedo de propósito para se despedir de nós, ia dando recomendações à medida que se lembrava: “Não apanhem frio. Se fizerem uma fogueira ponham pedras à volta. Pus pensos e algodão no bolso da frente da mochila. Têm pilhas nas lanternas?”. A tia Júlia tentava acalmá-la explicando que íamos estar cercados de antigos escuteiros que acampavam e faziam caminhadas na floresta praticamente desde o berço, mas a minha mãe continuava a ver aquilo como a expedição para procurar a nascente do Nilo.
Não, não demos por nada. Com tanta excitação ninguém deu pelo silêncio, pelos lábios cerrados, pelas rugas na testa, da tia Júlia.
Eu só as vejo agora, agora que penso nisso.
Imagino-as perfeitamente.
Ela sabia o que estava a fazer. Sempre soube.
Nem os pássaros ensinam os seus a voar. Atiram-nos para fora do ninho.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2006
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