segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

017 - Os Herdeiros (versao revista)

Eu sempre julgara que o prédio terminava no quarto andar, onde vivia o Doutor Moreira, um senhor advogado que raramente víamos e que só parecia existir no Natal, quando ia lá a casa agradecer o bolo rei que a tia Júlia lhe mandava por mim e pelo Jaime, o seu comité natalício que distribuia bolos pela vizinhança. É que, embora ela se divertisse a desconstruir o nosso Natal com as suas histórias de cometas, rituais pagãos saturninos, ou o eterno favorito “Pai Natal ou São Nicolau - o discípulo de Frankenstein”, ela fazia sempre várias fornadas de bolo-rei para oferecer. E não só para os vizinhos (e isso era outra coisa estranha, como ela conhecia tanta gente mesmo que raramente saísse de casa).
Mas lá estava, uma porta oposta à do apartamento do Doutor Moreira, e, com a chave que a minha mão suada segurava, a fechadura abriu-se facilmente. Aí havia umas escadas, pintadas com tinta esmalte vermelha, vi eu, assim que acendi o interruptor ao lado da ombreira. E, lá em cima, uma única divisão a todo o tamanho do prédio, completamente atulhada de livros.
Não vale a pena começares a imaginar um sotão escuro e poeirento, como costumam ser nos livros de aventura e mistério. A tia Júlia gastara bastante dinheiro a pôr aquele sitio em condições, fiquei a saber, quando mais tarde lhe expressei a minha admiração. Depois de comprar aos vizinhos as partes que lhes cabiam no tempo em que fora uma arrecadação do condomínio, húmida e poeirenta, a tia Júlia reconstruira praticamente o sotão todo e instalara electricidade, um ar condicionado e usara materiais e vernizes a que os insectos não acham grande piada. E, como o pé direito era relativamente alto na maior parte do sotão, apesar da quantidade absurda de livros, tinha-se a sensação de estar num sítio espaçoso e arrumado. Não era para admirar. Fiquei também a saber depois que, semanalmente, a dona Otília passava ali uma manhã com o aspirador.
A minha primeira reacção, plantado ao cimo das escadas, foi de espanto. E depois senti-me como se tivesse ganho a lotaria. Aquilo eram livros para ler até ao fim da vida! Avancei por aqueles corredores de papel em êxtase salivante e reverência mística. Mas, em pouco mais de meia-hora, depois de explorar estantes, caixotes e pilhas de livros, a minha excitação inicial esmorecera até se tornar num profundo e quase magoado desapontamento. É que apenas uma pequeníssima parte daqueles livros era em português.

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