Foi ele quem correu para mim e me ajudou a levantar. Enquanto me observava, tentando ver se eu tinha partido alguma coisa, observei-o eu a ele, ambos indiferentes à histeria do Jaime e da tia Júlia que saltitavam à nossa volta.
Ele era bastante novo, bastante bonito e com uns olhos ternos mas decididos, que eram a sua maior arma, tal como a voz. Davam-lhe a liderança em qualquer situação. E no entanto, logo nesse momento eu soube que estava algo errado. Que o padre Matos não devia ser padre. Agora sei que o estava a comparar com outra pessoa, mas foi isso que, felizmente, me fez construir desde logo uma reserva em relação a ele.
Ninguém teve a mínima dúvida quando ele anunciou que eu estava bem, que era só o nariz a sangrar e alguns arranhões. Ele fora chefe de escuteiros, disse-nos, e tinha experiência nestas coisas. Os miúdos estavam sempre a aleijar-se.
A tia Júlia estava visívelmente mais aliviada, mas isso não livrou o Jaime de um raspanete. Enquanto ela corria a buscar algodão e água oxigenada para me limpar, ia desfiando a série de castigos que o iam ocupar durante a semana.
O padre Matos aproveitou a saída dela para me dizer que eu já podia tirar a revista pornográfica de dentro das calças. Ele sentira o livro das runas, quando me apalpara para ver se tinha costelas partidas. Eu assim fiz, sem me rir da “piada” dele, mais para aliviar o incómodo do que para lhe explicar que aquele volume não era nada do que ele julgava. O Jaime nem achou estranho que eu estivesse a esconder um livro, mas ambos olharam curiosos para a capa quando o pousei na secretária. E depois olharam para mim, como se a queda me tivesse afectado o juízo. Mas a tia Júlia voltou e o caos dos primeiros socorros acabou por desviar as atenções e nos levar para a sala, onde ela depois serviu chá e biscoitos para repor a calma e a ordem. O padre Matos contou-nos histórias dos escuteiros e, sendo ele tão absolutamente magnético e divertido, até acabou por ser uma tarde bem passada.
Assim se insinuou ele nas nossas vidas, quase sem darmos por isso, conquistando imediatamente a afeição do Jaime e da tia Júlia, só por me ter levantado do chão e nos ter feito rir com anedotas de adolescentes a cagar no mato.
E eu ria-me também, e tentava atribuir aquela sensação de que algo estava mal a todos os acontecimentos e neuroses do meu dia. Muito tempo passou até me ocorrer perguntar o que fora o padre Matos fazer a casa da tia Júlia naquela tarde. Tempo demais. Anos demais.
Como pude ser tão cego?
segunda-feira, 16 de janeiro de 2006
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5 comentários:
"Que o padre Matos não devia ser padre. Agora sei que o estava a comparar com outra pessoa, mas foi isso que, felizmente, me fez construir desde logo uma reserva em relação a ele."
Não podias cortar a última frase? Quando escreves "que o padre matos não devia ser padre." é muito muito forte... Se pudesses não acrescentar mais nada era óptimo...
"O padre Matos contou-nos histórias dos escuteiros e, sendo ele tão absolutamente magnético e divertido, até acabou por ser uma tarde bem passada. "
Não gosto da expressão "até acabou por ser uma tarde bem passada".
Parece que não se enquadra no estilo do resto da narrativa... Parece mais leve.
1 - Não. Essa é mesmo assim porque sim e, mais uma vez, a culpa é da Joana.
2 - Também acho que tens razão, andei à volta dessa frase uma data de tempo mas ainda não a resolvi em condições. Será revista.
1- Sacana da Joana!!!
2- é difícil, de facto... sugestão de trazer por casa (talvez ajude a que tenhas uma ideia melhor): "[...] e nos levar para a sala, onde depois nos serviu chá e biscoitos para repor a calma e a ordem. Aí se passou o resto da tarde entre histórias de escuteiros, contadas pelo Padre Matos num jeito tão absolutamente magnético e divertido que se deixou passar a hora de jantar/teve de ser posto fora pela tia júlia/qualquer coisa/a noite chegou sem se dar por isso."
Boas sugestões. Deixa-me ruminá-las.
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