Isto é o que tenho de começar por te contar. Aconteceu teria eu cinco, talvez seis anos. Aconteceu por causa do sangue. Eu tinha sangrado, sabes, por ter batido com a cara numa cadeira. Eu e o Jaime andávamos sempre a correr. E havia uma festa. Eu julguei que era uma festa. Tínhamos vindo a casa do Jaime porque havia uma festa, foi a explicação que achei para tanta gente em casa deles. Uma festa de adultos, mesmo que estivessem todos de negro e não houvesse música.
Eu e o Jaime brincávamos, que os adultos pouco nos interessavam, e, na correria, eu bati numa cadeira e comecei a sangrar do nariz. Sei que fiquei coberto de sangue e lembro-me de chorar, não por estar a sangrar, mas por ter medo que me batessem por me ter sujado.
Levaram-me da sala, limparam-me, assoaram-me, tirando o sangue, o ranho e as lágrimas. Vestiram-me de lavado com roupas do Jaime e depois tentaram deitar-me no quarto dele. Eu fingi dormir para que me deixassem sozinho. E quando fiquei em paz levantei-me para ver os brinquedos. Ele tinha um comboio. E carrinhos. E quando me cansei disso abri a porta do quarto e olhei para o corredor. Estava escuro, e era demasiado comprido, todo portas. Eu ouvia o ruido da festa, as vozes dos adultos, mas ninguém podia saber que eu estava acordado. Resolvi experimentar as outras portas. A casa de banho. Um armário. E depois um quarto.
Neste nunca tinha entrado. Pela porta entreaberta espreitei lá para dentro. Estava escuro e na cama estava deitado um homem, vestido e calçado. Fato preto e sapatos engraxados, de negro brilhante. Ao lado dele sentava-se outro homem, na beira da cama. Estava também vestido de negro, mas apenas de calças e camisa. Camisa negra. Foi isso que eu achei estranho. As camisas eram sempre brancas. Branco era o cabelo dele, a contrastar com a roupa. Ele olhou para mim. E sorriu. Eu disse:
- Ele está morto.
Não foi uma pergunta. Apenas disse o que percebera nesse momento, que o homem deitado estava morto.
O homem da camisa preta assentiu. E depois disse-me qualquer coisa. E durante vinte anos não me lembrei dessas palavras.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2006
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