Salzburgo, Dezembro de 2005
Querida Joana:
Creio que esta vai ser a carta mais longa da minha vida e suponho que acabará por a conter, para que percebas. Pelo menos para que tenhas uma idéia melhor do que se está a passar. Não que contar-te a história da minha vida te vá permitir perceber tudo o que se passou porque nem eu consigo ainda tirar grande sentido de tudo isto (e, francamente, cada vez tenho mais medo de o fazer…). Mas sinto que to devo.
Cheguei aqui hoje, ao fim da manhã e, mal larguei as malas no hotel, saí à procura do Jaime. Tanto quanto sei, não está em nenhum hotel. Mas também só fui a alguns mesmo no centro. A propósito, Salzburgo é uma cidade estupidamente bonita (apesar da pirosa, assustadora, fatigante, ubíqua, omnipresença de Mozart) mas, como calculas, não estou com uma disposição de turista. Se estivesse com o Jaime, num dos nossos passeios, seríamos verdadeiramente as irmãs Schlegel, como as mamã nos chamava, a meter o nariz em tudo o que fosse igreja, museu ou livraria. A tomar cafés e chás nas esplanadas. A apreciar vistas panorâmicas… Mas está frio, um frio de rachar, e eu estou sozinho como a merda e Salzburgo começou a deprimir-me. Ou, para ser mais exacto, a deixar-me mais triste do que preocupado. O tempo estava carregado de nuvens logo quando aterrei e só tem ficado pior. À tarde começou a chover, mas à noite é bem capaz de nevar, com o frio que está. Voltei para o meu hotel e pedi as páginas amarelas na recepção. Passei metade da tarde a ligar para hotéis. Nada.
Enfim… depois desisti e tenho estado aqui às voltas, como um animal na jaula sem saber o que fazer. O que estou eu aqui a fazer?…
Há bocado dei por mim a ter pena de não saber rezar. E depois enfureci-me comigo mesmo por estar a ser tão estúpido e a ter uma recaída cristã. Mas é o desespero, sabes?… eu sei que sabes…
Espero que não estejas zangada comigo mas, como espero que venhas a perceber depois de leres isto, fiz o que o meu coração mandou. (É tão antiquado, falar assim. Tão novelista e vitoriano… que importância tem o meu coração no meio disto tudo?) Mas também sei que, se não tivesse seguido aquele impulso, teria ficado retido em Portugal. De certeza que não me deixavam sair do país.
Espero que a polícia não te esteja a dar muitos problemas. A minha mãe tentou telefonar-me mas eu não estou ainda em condições de falar com ela. Mandei-lhe só um sms a dizer que estou bem, que está tudo bem.
Mas não está nada bem. Há semanas que nada está bem. Desde que a tia Júlia morreu que tudo se tem estado a desmoronar. Tem sido um pesadelo. Um “mareritt” — a palavra norueguesa é bem melhor, neste caso. Significa, numa tradução muito livre e misturada com o “nightmare” inglês (que afinal tem a mesma origem), um cavalgada nocturna num cavalo selvagem. É isto que verdadeiramente sinto. Que me montaram na garupa de um dos cavalos do apocalipse. Sem sela. E eu estou a fazer os possíveis para me aguentar. Para não cair e ser esmagado por cascos em fogo.
A minha mãe vai-te ajudar, vais ver. Ela tem um espírito prático. Verdadeiramente germânico.
Mas nada…nada, Joana, percebes?, nada me vai fazer deixar de sentir remorsos por te deixar assim, com a casa…não, com a vida, toda coberta de sangue, manchada de horror.
A única explicação que há para isso é o meu amor pelo Jaime. E é isso, principalmente, que eu te vou tentar explicar.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2006
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