segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

015 - Os Herdeiros (versao revista)

Comecei por perguntar à minha mãe, “o que faz a tia Júlia?”
“Que pergunta é essa? Ela não faz nada, quer dizer, trata da casa e de vocês e já é mais que muito.”
“Mas ela não faz mais nada? Nunca teve uma profissão?”
“Que eu saiba não.”
“Então e o dinheiro? Ela tem mais dinheiro do que nós.”
“António, não te quero a falar assim!” E pôs-se a olhar para mim de lado, a colher da sopa ainda na mão que lhe amparava o queixo. “A tia Júlia tem uma pensão que tira do que herdou da família e do marido”.
“Como é que sabes?”
“Como, como é que sei? Sei e pronto! Cala-te lá com isso e come a sopa. É muito feio falar de dinheiro à mesa.”

Nessa noite, já na cama, pus-me a pensar na vida da tia Júlia. Ela estava sempre em casa, ou pelo menos era essa a impressão que eu tinha, mas eu só passava lá as tardes e às vezes os serões. Mesmo o Jaime estava fora todas as manhãs, algumas tardes e ao fim de semana nós saíamos muitas vezes com a minha mãe. Também nas férias, fossemos nós nalguma excursão ou passeio, a tia Júlia recusava-se sempre a acompanhar-nos.
O que fazia ela?
Duas vezes por semana ia lá a Dona Otília fazer as limpezas e engomar a roupa (e continua a ir), por isso, de afazeres domésticos, a tia Júlia pouco mais fazia que cozinhar e, de vez em quando, coser as meias do Jaime. Era frequente eu encontrá-la a ler, sentada num cadeirão do escritório ou da sala mas, embora ela parecesse sempre à vontade para falar de qualquer assunto, da cultura helénica à teoria quântica, passando pelas filosofias de Nietzsche, Kant e Santo Agostinho, a julgar pelo que costumava ter nas mãos, ela pouco mais lia que policiais da Agatha Christie.
E ao pensar nisso nisso, ocorreu-me outra questão ainda mais estranha. De onde vinham os livros que apareciam lá por casa? É que não havia nenhuma grande estante ou biblioteca, nenhum tesouro de Próspero, e no entanto, naquela casa, tinham-me passado pelas mãos todas as comédias e tragédias de Shakespeare, todas as aventuras algumas vez escritas por Julio Verne, Tolkien, Enid Blyton e Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada. Já para não falar nos dicionários, enciclopédias e todo o género de tomos informativos ou fantásticos que apareciam de algum lado sempre que se precisava deles. O total oposto da minha casa, onde a minha mãe ordenava os livros, com um militarismo alemão, na estante que cobria uma parede inteira da sala e de onde eles raramente saíam.
Em casa da tia Júlia havia sempre livros. Mais livros até que na biblioteca da escola, que eu achava sempre diminuta, e, no entanto, eu não me conseguia recordar de alguma vez os ter ido procurar a uma prateleira. Eles estavam em todo o lado mas não eram postos em sítio nenhum, simplesmente flutuavam por ali. E quando eu pensava na enorme quantidade deles que já tinha lido, mesmo com apenas 13 anos, não conseguia perceber onde eles se iam enfiar antes e depois de serem lidos.
Nessa noite não dormi.

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