Seguiu-se uma inédita mistura de impotência com fascínio. É que havia de tudo: livros novos misturados com velhos, ficção com tratados científicos, revistas entremeadas com enciclopédias encadernadas. Mas o verdadeiro espanto era a diversidade de línguas. Era uma autêntica babilónia. Porque não havia apenas livros em confortável inglês, françês, espanhol, italiano ou alemão… havia também livros nos alfabetos e línguas mais delirantes, começando por grego ou russo e indo do árabe para o geórgio, tailandês, indiano… e por aí fora até chinês e japonês. Não que eu conseguisse exactamente destinguí-los, ou soubesse sequer dar-lhes nomes como cirílico, cóptico ou aramaico, mas a minha cultura visual era suficiente para destinguir coisas que pareciam “grego” de outras que pareciam “árabe” e outras que pareciam “chinês”.
Fiquei por ali ainda algum tempo, hipnotizado por imagens, alfabetos e pela esmagadora constatação de que o mundo e a humanidade eram uma coisa muito grande. Senti-me minúsculo. Eu pouco mais era que um rato naquele sotão.
E depois senti uma certa raiva para com a tia Júlia. Era tão típico dela ter-me mandado para ali sózinho, sem a mínima explicação, sem o menor aviso. O que era isto? Uma lição de humildade para o rapazinho que apanhava porrada na escola porque lia mais do que os outros e tirava “excelentes” nos testes de português? Que gostava de assustar os professores citando Fernando Pessoa e fazendo metáforas com referências a Milton, Dante, Camões, Virgílio e Homero?
E por outro lado, eu tinha a certeza de que ela estaria lá em baixo, a contar todos os minutos que eu passasse ali e não deixaria de olhar, com aquele seu falso desinteresse de coruja, para qualquer livro que eu decidisse levar para ler.
Levantei-me numa fúria e decidi que dali não levaria nada e que iria fingir que nada daquilo me interessava, só para a magoar.
Mas sabes, (eu sei que sabes), há um magnetismo tão grande nos livros… Se eu não percebia como é que na casa da tia Júlia os livros que se queria e precisava apareciam logo ali ao nosso lado, mais estranho ainda é o fenómeno que já vivi em incontáveis livrarias e bibliotecas. De, de repente, de entre toda uma enormidade de volumes, aparecer um que temos de agarrar, que sabemos, com uma certeza que só se equipara à certeza do amor, ter lá dentro tudo o que precisamos para dar descanso à mente e ao espírito.
Eu já tinha um pé no primeiro degrau da escada quando vi um livro que me fez parar. E depois de pegar nele, virá-lo, desfolhá-lo, cheirá-lo, amaldiçoei-me a mim próprio por não ser capaz de manter uma decisão simples. Tive de o levar.
Era um livro até bastante pequeno, bastante recente, bastante “barato”. Uma edição brasileira de um original inglês. O título era: “Decifrando as runas vikings”.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2006
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