quarta-feira, 28 de dezembro de 2005
trivia do norte
Para quem não sabe, como eu não sabia - Björk significa Bétula. As bétulas são as últimas árvore do norte, ou seja, antes do ponto onde fica demasiado frio para existirem árvores, só há bétulas.
022 - Os Herdeiros
Felizmente a campainha tocou nesse momento e a tia Júlia foi abrir a porta sem ligar ao facto de eu ter corado até à ponta dos cabelos. Deixei-me estar na cozinha um bocado, mas quando percebi que tinham chegado visitas e que a tia Júlia as ia receber na sala, não me apeteceu ficar sozinho a sentir-me miserável.
O Jaime já tinha voltado da aula de judo e estava no quarto dele, sentado na cama, com os livros da escola espalhados à volta, embrenhado nos trabalhos de matemática.
“Sabes onde estive?”, perguntei-lhe.
“A Vó disse que tinhas ido ao sotão.”
“Já lá foste?”
“Claro que já lá fui!”
“Eu não sabia que havia um sotão.”
O Jaime levantou os olhos da matemática.
“É giro não, é? Tem montes de tralha.”
“Porque é que nunca ninguém me disse que havia uma biblioteca no sotão?”
“Julguei que sabias.”
“Não. Não sabia.”
“Isso é porque nunca prestas atenção a nada.”
E dito isto voltou a concentrar-se nos trabalhos de casa. Eu sentei-me na cadeira da secretária, a apurar uma fúria silenciosa. Sentia o livro debaixo do cinto das calças a magoar-me a barriga e só me apetecia pegar nele e atirá-lo à cabeça do Jaime.
Ele não tardou a estranhar o meu silêncio.
“O que foi?”
“Nada!”
Ele ficou a olhar para mim até que disse:
“Anda cá, vou-te mostrar o que aprendi hoje!”. Tirou os livros da cama e pôs-se de pé a saltitar no colchão.
“Não me apetece.”
“Vá lá! Não sejas maricas. Eu não te aleijo.”
Eu acedi porque não estava com cabeça para inventar uma desculpa para fugir áquilo. O Jaime tentava sempre ensinar-me todos os novos golpes de judo que aprendia.
Desta vez eu tinha de ficar atrás dele e tentar apertá-lo com uma espécie de abraço. E quando pus os braços à volta dele, e enquanto ele os ajeitava para que estivessem no sítio certo, o calor do corpo e o cheiro a lavado do cabelo dele encheram-me de uma tristeza súbita. Foi esse o problema. Eu devia estar a simular um ataque, mas estava mais a derreter-me de encontro ao corpo dele. Antes que pudesse sequer aperceber-me devidamente do que se passava, ele deu-me um puxão e eu voei por cima do ombro dele com tal velocidade que, em vez de aterrar no colchão, como era suposto, fui bater na secretária e depois nos tacos do chão. Ficou tudo negro por uns segundos e embora não sentisse nenhuma dor nesse momento, sabia que assim que me levantasse e o susto passasse me ia sentir todo partido, por isso deixei-me ficar deitado, na posição em que tinha caído e, como me sentia tão miserável, resolvi juntar umas lágrimas ao sangue que me escorria do nariz.
O Jaime andava histérico à minha volta. “Estás bem?! Estás bem?!” E passos no corredor anunciaram a chegada da tia Júlia que perguntava “O que é que se passa?! O que é que vocês fizeram agora?”. Com ela também vinha um homem, a visita a quem ela fora abrir a porta. Deitado no chão, eu só lhe via os pés, os sapatos negros brilhantes, as calças pretas. Foi para o ver que me resolvi levantar, em vez de continuar com a fita que tinha começado a fazer com a choradeira. Ele estava todo vestido de negro, exceptuando o revelador colarinho branco e o crucifixo dourado que lhe pendia de um cordão ao peito. E embora eu nunca tivesse conhecido nenhum padre, havia algo de perturbadoramente familiar na sua figura. Algo que, como te disse, levou todos estes anos até me voltar à memória.
O Jaime já tinha voltado da aula de judo e estava no quarto dele, sentado na cama, com os livros da escola espalhados à volta, embrenhado nos trabalhos de matemática.
“Sabes onde estive?”, perguntei-lhe.
“A Vó disse que tinhas ido ao sotão.”
“Já lá foste?”
“Claro que já lá fui!”
“Eu não sabia que havia um sotão.”
O Jaime levantou os olhos da matemática.
“É giro não, é? Tem montes de tralha.”
“Porque é que nunca ninguém me disse que havia uma biblioteca no sotão?”
“Julguei que sabias.”
“Não. Não sabia.”
“Isso é porque nunca prestas atenção a nada.”
E dito isto voltou a concentrar-se nos trabalhos de casa. Eu sentei-me na cadeira da secretária, a apurar uma fúria silenciosa. Sentia o livro debaixo do cinto das calças a magoar-me a barriga e só me apetecia pegar nele e atirá-lo à cabeça do Jaime.
Ele não tardou a estranhar o meu silêncio.
“O que foi?”
“Nada!”
Ele ficou a olhar para mim até que disse:
“Anda cá, vou-te mostrar o que aprendi hoje!”. Tirou os livros da cama e pôs-se de pé a saltitar no colchão.
“Não me apetece.”
“Vá lá! Não sejas maricas. Eu não te aleijo.”
Eu acedi porque não estava com cabeça para inventar uma desculpa para fugir áquilo. O Jaime tentava sempre ensinar-me todos os novos golpes de judo que aprendia.
Desta vez eu tinha de ficar atrás dele e tentar apertá-lo com uma espécie de abraço. E quando pus os braços à volta dele, e enquanto ele os ajeitava para que estivessem no sítio certo, o calor do corpo e o cheiro a lavado do cabelo dele encheram-me de uma tristeza súbita. Foi esse o problema. Eu devia estar a simular um ataque, mas estava mais a derreter-me de encontro ao corpo dele. Antes que pudesse sequer aperceber-me devidamente do que se passava, ele deu-me um puxão e eu voei por cima do ombro dele com tal velocidade que, em vez de aterrar no colchão, como era suposto, fui bater na secretária e depois nos tacos do chão. Ficou tudo negro por uns segundos e embora não sentisse nenhuma dor nesse momento, sabia que assim que me levantasse e o susto passasse me ia sentir todo partido, por isso deixei-me ficar deitado, na posição em que tinha caído e, como me sentia tão miserável, resolvi juntar umas lágrimas ao sangue que me escorria do nariz.
O Jaime andava histérico à minha volta. “Estás bem?! Estás bem?!” E passos no corredor anunciaram a chegada da tia Júlia que perguntava “O que é que se passa?! O que é que vocês fizeram agora?”. Com ela também vinha um homem, a visita a quem ela fora abrir a porta. Deitado no chão, eu só lhe via os pés, os sapatos negros brilhantes, as calças pretas. Foi para o ver que me resolvi levantar, em vez de continuar com a fita que tinha começado a fazer com a choradeira. Ele estava todo vestido de negro, exceptuando o revelador colarinho branco e o crucifixo dourado que lhe pendia de um cordão ao peito. E embora eu nunca tivesse conhecido nenhum padre, havia algo de perturbadoramente familiar na sua figura. Algo que, como te disse, levou todos estes anos até me voltar à memória.
terça-feira, 27 de dezembro de 2005
021 - Os Herdeiros
Voltemos àquela tarde.
Enquanto descia as escadas, de volta ao apartamento da tia Júlia, escondi o livro debaixo da camisola. Estava decicido a não mostrar fraqueza, orgulho ferido ou o que fosse.
Ela estava na cozinha, a arranjar feijão verde, e quando eu entrei levantou apenas os olhos por um segundo.
“Então? Achaste alguma coisa que te interessasse?”
“Não.”
“É natural. É demasiada tralha.”
“De onde vieram aqueles livros. Não são seus, pois não?”
“Agora são. Mas vieram de muitos sitios diferentes. A maioria foi herdada. A família do Augusto lia muito.”
“Porque não os dá?”
“Porque havia de o fazer? E a quem havia de os dar?”
“Não os vai ler todos, pois não? Podia doá-los a uma biblioteca.”
“Mas eu gosto de cuidar deles. E os livros encontram sempre os seus leitores. Tarde ou cedo eles chamam alguém para os ler. Nem que leve anos... ou séculos... Não te preocupes por eles estarem fechados. Não estão. Os livros têm uma vontade própria e só se deixam ler quando querem, não achas?”
“Não sei.”
“Trancaste a porta e trouxeste a chave?”
“Sim.”
“Então guarda-a. Fica essa para ti. E depois, quando acabares de ler esse livro que tens escondido na camisola, volta a pô-lo lá.”
Enquanto descia as escadas, de volta ao apartamento da tia Júlia, escondi o livro debaixo da camisola. Estava decicido a não mostrar fraqueza, orgulho ferido ou o que fosse.
Ela estava na cozinha, a arranjar feijão verde, e quando eu entrei levantou apenas os olhos por um segundo.
“Então? Achaste alguma coisa que te interessasse?”
“Não.”
“É natural. É demasiada tralha.”
“De onde vieram aqueles livros. Não são seus, pois não?”
“Agora são. Mas vieram de muitos sitios diferentes. A maioria foi herdada. A família do Augusto lia muito.”
“Porque não os dá?”
“Porque havia de o fazer? E a quem havia de os dar?”
“Não os vai ler todos, pois não? Podia doá-los a uma biblioteca.”
“Mas eu gosto de cuidar deles. E os livros encontram sempre os seus leitores. Tarde ou cedo eles chamam alguém para os ler. Nem que leve anos... ou séculos... Não te preocupes por eles estarem fechados. Não estão. Os livros têm uma vontade própria e só se deixam ler quando querem, não achas?”
“Não sei.”
“Trancaste a porta e trouxeste a chave?”
“Sim.”
“Então guarda-a. Fica essa para ti. E depois, quando acabares de ler esse livro que tens escondido na camisola, volta a pô-lo lá.”
sábado, 24 de dezembro de 2005
020 - Os Herdeiros
Desculpa, não ligues a esta riscalhada toda.
Aconteceu uma coisa estranha agora mesmo. Enquanto me tentava acalmar voltei a tentar ligar para o telemóvel do Jaime, como tinha feito todos os dias, várias vezes ao dia, a semana passada. Mas depois daquela noite, não sei porquê fiquei convencido que ele não o tinha, que talvez o tivesse perdido ou deixado nalgum sítio. E mesmo enquanto vinha para aqui, e enquanto corria a cidade e ligava para tudo o que é hotel em Salzburgo não me ocorreu voltar a ligar-lhe.
E não sei porquê, fiz isso agora. Ou antes, sei muito bem: desespero irracional.
Mas, em vez do sinal de desligado que estava à espera, o telefone tocou. Ninguém atendeu, mas só ouvir-lhe a voz no gravador de mensagens encheu-me de alegria. E fiquei tão surpreendido que não soube o que dizer e não deixei mensagem. Por isso voltei a ligar. Mas o telemóvel estava de novo desligado.
Não sei como interpretar isto. Ou ele tem o telefone e não quer mesmo falar comigo ou então outra pessoa estava a mexer nele. E porque desligaria alguém o telefone logo depois de eu tentar telefonar? Se era ele quem o tinha na mão então deve ter visto no écran que era eu quem estava a ligar. E se não era ele… oh merda!
Roí as unhas e comi o chocolate do mini bar (o preço é uma roubalheira, mas que se lixe). Já estou mais calmo.
Aconteceu uma coisa estranha agora mesmo. Enquanto me tentava acalmar voltei a tentar ligar para o telemóvel do Jaime, como tinha feito todos os dias, várias vezes ao dia, a semana passada. Mas depois daquela noite, não sei porquê fiquei convencido que ele não o tinha, que talvez o tivesse perdido ou deixado nalgum sítio. E mesmo enquanto vinha para aqui, e enquanto corria a cidade e ligava para tudo o que é hotel em Salzburgo não me ocorreu voltar a ligar-lhe.
E não sei porquê, fiz isso agora. Ou antes, sei muito bem: desespero irracional.
Mas, em vez do sinal de desligado que estava à espera, o telefone tocou. Ninguém atendeu, mas só ouvir-lhe a voz no gravador de mensagens encheu-me de alegria. E fiquei tão surpreendido que não soube o que dizer e não deixei mensagem. Por isso voltei a ligar. Mas o telemóvel estava de novo desligado.
Não sei como interpretar isto. Ou ele tem o telefone e não quer mesmo falar comigo ou então outra pessoa estava a mexer nele. E porque desligaria alguém o telefone logo depois de eu tentar telefonar? Se era ele quem o tinha na mão então deve ter visto no écran que era eu quem estava a ligar. E se não era ele… oh merda!
Roí as unhas e comi o chocolate do mini bar (o preço é uma roubalheira, mas que se lixe). Já estou mais calmo.
019 - Os Herdeiros
Começou a nevar. Parei de escrever porque estava a ficar com caimbras na mão. Não me lembro de alguma vez ter escrito tanto à mão. Mas preciso disto. No momento em que fui para a janela encostar a testa ao vidro para me refrescar (estes austríacos são uns fanáticos do aquecimento central) o meu cérebro voltou ao caos dos últimos dias. É demasiado. Escrever ajuda-me a focar e sinto que as coisas que te devo dizer são coisas que eu próprio preciso saber, mesmo que sejam memórias minhas. A nossa condição de humanos é tão imperfeita… Fazer sentido das coisas não é o mesmo que recordá-las e muito menos vivê-las na pele...
Depois também estive a ver televisão, mas nem o canal porno (grátis!) me conseguiu distrair. É esta certeza de que o Jaime está em perigo que me deixa completamente desfeito. Como ele estava diferente em tua casa! Como pode uma semana mudar tanto assim uma pessoa?
Que pergunta…eu sei.
A mesma semana faz com que eu agora nem me reconheça no espelho. Esta barba, esta cicatriz.
Ele está em perigo e é por minha causa. Eu sei. Sinto-o. Porque outro motivo me esconderia tanta coisa? Se a seta com que me fez esta ferida me tivesse atingido no coração eu não duvidaria por um segundo de que foi lançada por amor. Felizmente ele tem boa pontaria... Esta ferida não é nada. O que me dói é que ele julgue que me pode proteger mantendo-me longe e ignorante do que se passa. Que pateta. Que idiota!
E como eu estou preocupado, Joana. É que ele é um bocado de mim, e não adianta que seja ele a sofrer em vez de mim. A dor é sentida pelos dois (tu viste como ele chorou por me ter ferido). E ele É meu irmão. MEU irmão!
- várias frases riscadas até se tornarem ilegíveis -
Depois também estive a ver televisão, mas nem o canal porno (grátis!) me conseguiu distrair. É esta certeza de que o Jaime está em perigo que me deixa completamente desfeito. Como ele estava diferente em tua casa! Como pode uma semana mudar tanto assim uma pessoa?
Que pergunta…eu sei.
A mesma semana faz com que eu agora nem me reconheça no espelho. Esta barba, esta cicatriz.
Ele está em perigo e é por minha causa. Eu sei. Sinto-o. Porque outro motivo me esconderia tanta coisa? Se a seta com que me fez esta ferida me tivesse atingido no coração eu não duvidaria por um segundo de que foi lançada por amor. Felizmente ele tem boa pontaria... Esta ferida não é nada. O que me dói é que ele julgue que me pode proteger mantendo-me longe e ignorante do que se passa. Que pateta. Que idiota!
E como eu estou preocupado, Joana. É que ele é um bocado de mim, e não adianta que seja ele a sofrer em vez de mim. A dor é sentida pelos dois (tu viste como ele chorou por me ter ferido). E ele É meu irmão. MEU irmão!
- várias frases riscadas até se tornarem ilegíveis -
metereologia
Não há como dizer que vai chover para fazer sol... afinal quem passou a tarde da véspera de natal colado à playstation foi o meu namorado. Eu tive que me resignar a ler um livro e a escrever umas coisitas. Podem considerar isto a vingança do Pai Natal.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2005
herdeiros em ferias
Meus caros leitores:
Devido à epoca festiva que se aproxima, vou-me fechar em casa aproveitando para cultivar a mossa no sofa e exercitar os polegares nos comandos da playstation e da televisão. Isto porque embora até haja umas prendas que parecem livros debaixo da árvore lá em casa (coisas pesadas que quando se abanam não fazem barulho e logo não são nem DVDs nem jogos) o meu cérebro vai fechar para um bem merecido shut down>restart. Como tal, durante uns dias dar-se-á primazia ao estômago e a actividades que não exijam todos os dedos das mãos como a dactilografia (e se acham que eu podia escrever com apenas dois dedos, tambem podem passar a noite de 24 à espera do Pai Natal)
Como tal, votos de que passem uns dias aconchegados
Com manifestações de apreço,
Eu.
Devido à epoca festiva que se aproxima, vou-me fechar em casa aproveitando para cultivar a mossa no sofa e exercitar os polegares nos comandos da playstation e da televisão. Isto porque embora até haja umas prendas que parecem livros debaixo da árvore lá em casa (coisas pesadas que quando se abanam não fazem barulho e logo não são nem DVDs nem jogos) o meu cérebro vai fechar para um bem merecido shut down>restart. Como tal, durante uns dias dar-se-á primazia ao estômago e a actividades que não exijam todos os dedos das mãos como a dactilografia (e se acham que eu podia escrever com apenas dois dedos, tambem podem passar a noite de 24 à espera do Pai Natal)
Como tal, votos de que passem uns dias aconchegados
Com manifestações de apreço,
Eu.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2005
Fondo mas nao sendo
Hoje apeteceu-me partilhar as capas que se pensaram para o meu primeiro livro. Aceitam-se comentários e votos na favorita (com justificação escrita). Não é preciso ter lido o livro para participar.
proposta 1
proposta 2
proposta 3
proposta 4
proposta 5
proposta 1
proposta 2
proposta 3
proposta 4
proposta 5
terça-feira, 20 de dezembro de 2005
um daqueles dias
É meio-dia e até agora a minha manhã foi passada a lidar com máquinas avariadas e gente incompetente (correios-banco-finanças). Em situações destas, as máquinas parecem-me ter uma grande vantagem sobre as pessoas: podemos dar-lhes murros (não que isso resolva o problema, mas fica-se ligeiramente mais satisfeito).
domingo, 18 de dezembro de 2005
018 - Os Herdeiros
Além disso, sentia também uma inédita mistura de impotência com fascínio. É que havia de tudo: livros novos misturados com velhos, ficção com tratados científicos e revistas entremeadas com enciclopédias encadernadas. Mas o verdadeiro espanto era a diversidade de línguas. Era uma autêntica babilónia. Porque não havia apenas livros em confortável inglês, françês, espanhol, italiano ou alemão… havia também livros nos alfabetos e línguas mais delirantes, começando por grego ou russo e indo do árabe para o geórgio, tailandês, indiano… e por aí fora até chinês e japonês. Não que eu conseguisse exactamente destinguí-los, ou soubesse sequer dar-lhes nomes como cirílico, cóptico ou aramaico, mas a minha cultura visual era suficiente para destinguir coisas que pareciam “grego” de outras que pareciam “árabe” e outras que pareciam “chinês”.
Fiquei por ali ainda algum tempo, hipnotizado por imagens, alfabetos e pela esmagadora constatação de que o mundo e a humanidade eram uma coisa muito grande. Senti-me minúsculo. Eu pouco mais era que um rato naquele sotão.
E depois senti uma certa raiva para com a tia Júlia. Era tão típico dela ter-me mandado para ali sózinho, sem a mínima explicação, sem o menor aviso. O que era isto? Uma lição de humildade para o rapazinho que apanhava porrada na escola porque lia mais do que os outros e tirava “excelentes” nos testes de português? Que gostava de assustar os professores citando Fernando Pessoa e fazendo metáforas com referências a Dante, Camões, Virgílio e Homero?
E por outro lado, eu tinha a certeza de que ela estaria lá em baixo, a contar quantos minutos eu passaria ali e não deixaria de olhar, com aquele seu falso desinteresse de coruja, para qualquer livro que eu decidisse levar para ler.
Levantei-me numa fúria e decidi que dali não levaria nada e que iria fingir que nada daquilo me interessava, só para a magoar.
Mas sabes, (eu sei que sabes), há um magnetismo tão grande nos livros… Se eu não percebia como na casa da tia Júlia os livros que se queria e precisava apareciam ao nosso lado, mais estranho ainda é o fenómeno que já vivi em incontáveis livrarias e bibliotecas. De, de repente, de entre toda uma enormidade de volumes, aparecer um que temos de agarrar, que sabemos, com uma certeza que só se equipara à certeza do amor, ter lá dentro tudo o que precisamos para dar descanso à mente e ao espírito.
Eu já tinha um pé no primeiro degrau da escada quando vi um livro que me fez parar. E depois de pegar nele, virá-lo, desfolhá-lo, cheirá-lo, amaldiçoei-me a mim próprio por não ser capaz de manter uma decisão simples. Tive de o levar.
Era um livro até bastante pequeno, bastante recente, bastante “barato”. Uma edição brasileira de um original inglês. O título era: “Decifrando as runas vikings”.
Fiquei por ali ainda algum tempo, hipnotizado por imagens, alfabetos e pela esmagadora constatação de que o mundo e a humanidade eram uma coisa muito grande. Senti-me minúsculo. Eu pouco mais era que um rato naquele sotão.
E depois senti uma certa raiva para com a tia Júlia. Era tão típico dela ter-me mandado para ali sózinho, sem a mínima explicação, sem o menor aviso. O que era isto? Uma lição de humildade para o rapazinho que apanhava porrada na escola porque lia mais do que os outros e tirava “excelentes” nos testes de português? Que gostava de assustar os professores citando Fernando Pessoa e fazendo metáforas com referências a Dante, Camões, Virgílio e Homero?
E por outro lado, eu tinha a certeza de que ela estaria lá em baixo, a contar quantos minutos eu passaria ali e não deixaria de olhar, com aquele seu falso desinteresse de coruja, para qualquer livro que eu decidisse levar para ler.
Levantei-me numa fúria e decidi que dali não levaria nada e que iria fingir que nada daquilo me interessava, só para a magoar.
Mas sabes, (eu sei que sabes), há um magnetismo tão grande nos livros… Se eu não percebia como na casa da tia Júlia os livros que se queria e precisava apareciam ao nosso lado, mais estranho ainda é o fenómeno que já vivi em incontáveis livrarias e bibliotecas. De, de repente, de entre toda uma enormidade de volumes, aparecer um que temos de agarrar, que sabemos, com uma certeza que só se equipara à certeza do amor, ter lá dentro tudo o que precisamos para dar descanso à mente e ao espírito.
Eu já tinha um pé no primeiro degrau da escada quando vi um livro que me fez parar. E depois de pegar nele, virá-lo, desfolhá-lo, cheirá-lo, amaldiçoei-me a mim próprio por não ser capaz de manter uma decisão simples. Tive de o levar.
Era um livro até bastante pequeno, bastante recente, bastante “barato”. Uma edição brasileira de um original inglês. O título era: “Decifrando as runas vikings”.
017 - Os Herdeiros
Eu sempre julgara que o prédio terminava no quarto andar, onde vivia o doutor Moreira, um juiz que raramente viamos e que só parecia existir no Natal, quando ia lá a casa agradecer o bolo rei que a tia Júlia lhe mandava por mim e pelo Jaime, o seu comité natalício que distribuia bolos pela vizinhança. É que, embora ela se divertisse a desconstruir o nosso Natal com as suas histórias de cometas, rituais pagãos saturninos, ou o eterno favorito “Pai Natal ou São Nicolau - o discípulo de Frankenstein”, ela fazia sempre várias fornadas de bolo-rei para oferecer. E não só para os vizinhos (e isso era outra coisa estranha, como ela conhecia tanta gente mesmo que raramente saísse de casa).
Mas lá estava, uma porta oposta à do apartamento do doutor Moreira, e, com a chave que a minha mão suada segurava, a fechadura abriu-se facilmente. Aí havia umas escadas, pintadas com tinta vermelha, vi eu, assim que acendi o interruptor ao lado da ombreira. E, lá em cima, uma única divisão a todo o tamanho do prédio, completamente atulhada de livros.
Não vale a pena imaginares um sotão escuro e poeirento, como costumam ser nas aventuras e mistérios. A tia Júlia gastara bastante dinheiro a pôr aquele sitio em condições, fiquei a saber, quando lhe expressei a minha admiração. Depois de comprar aos vizinhos as partes que lhes competiam no tempo em que fora uma arrecadação húmida e poeirenta, a tia Júlia reconstruira praticamente o sotão todo e instalara electricidade, um ar condicionado e usara materiais e vernizes a que os insectos não acham grande piada. E, como o pé direito era relativamente alto na maior parte do sotão, apesar da quantidade absurda de livros, tinha-se a sensação de estar num sítio espaçoso e arrumado. Não era para admirar. Fiquei também a saber depois que, semanalmente, a dona Otília passava ali uma manhã com o aspirador.
A minha primeira reacção, plantado ao cimo das escadas, foi de espanto. E depois senti-me como se tivesse ganho a lotaria. Aquilo eram livros para ler até ao fim da vida! Avancei por aqueles corredores de papel em êxtase salivante e reverência mística. Mas, em pouco mais de meia-hora, depois de explorar estantes, caixotes e pilhas de livros, a minha excitação inicial esmorecera até se tornar num profundo e quase magoado desapontamento. É que apenas uma pequeníssima parte daqueles livros era em português.
Mas lá estava, uma porta oposta à do apartamento do doutor Moreira, e, com a chave que a minha mão suada segurava, a fechadura abriu-se facilmente. Aí havia umas escadas, pintadas com tinta vermelha, vi eu, assim que acendi o interruptor ao lado da ombreira. E, lá em cima, uma única divisão a todo o tamanho do prédio, completamente atulhada de livros.
Não vale a pena imaginares um sotão escuro e poeirento, como costumam ser nas aventuras e mistérios. A tia Júlia gastara bastante dinheiro a pôr aquele sitio em condições, fiquei a saber, quando lhe expressei a minha admiração. Depois de comprar aos vizinhos as partes que lhes competiam no tempo em que fora uma arrecadação húmida e poeirenta, a tia Júlia reconstruira praticamente o sotão todo e instalara electricidade, um ar condicionado e usara materiais e vernizes a que os insectos não acham grande piada. E, como o pé direito era relativamente alto na maior parte do sotão, apesar da quantidade absurda de livros, tinha-se a sensação de estar num sítio espaçoso e arrumado. Não era para admirar. Fiquei também a saber depois que, semanalmente, a dona Otília passava ali uma manhã com o aspirador.
A minha primeira reacção, plantado ao cimo das escadas, foi de espanto. E depois senti-me como se tivesse ganho a lotaria. Aquilo eram livros para ler até ao fim da vida! Avancei por aqueles corredores de papel em êxtase salivante e reverência mística. Mas, em pouco mais de meia-hora, depois de explorar estantes, caixotes e pilhas de livros, a minha excitação inicial esmorecera até se tornar num profundo e quase magoado desapontamento. É que apenas uma pequeníssima parte daqueles livros era em português.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2005
pechinchas natalicias
A melhor novidade nos escaparates natalícios da FNAC (visitados ontem) eram as edições nice price dos discos da 4AD. Cocteau Twins a 7 euros é melhor preço que nas lojas de segunda mão. Até eu que já só ouços mp3 não resisti a finalmente comprar o "Heaven or Las Vegas" e fetichisticamente poder enfim olhar para a prateleira dos CD´s e ver a colecção completa.
É o verdadeiro espírito do natal - comprar prendas pechincha para si mesmo.
É o verdadeiro espírito do natal - comprar prendas pechincha para si mesmo.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2005
016 - Os Herdeiros
No dia seguinte, antes de começar a minha “caça à bruxa” resolvi investigar a questão dos livros, que era uma coisa que me intrigava muito mais. Chegado da escola, sentei-me na mesa da sala e, com a tia Júlia na cozinha e o Jaime ainda nas aulas de Judo, em vez de fazer os trabalhos de casa de Matemática, resolvi contar os livros.
A sala estava, o que se podia chamar “arrumada”. A dona Otília estivera ali de manhã e, por onde ela passava, nada ficava torto, desalinhado ou poeirento. Num primeiro olhar, ninguém diria que esta divisão tinha livros. Mal nos apercebiamos de alguns sobre a mesa, outros sobre o piano, mais uns junto ao sofá, outros no parapeito da janela, outros… Comecei a contar. 123. Cento e vinte e três livros naquela sala. Eu nem acreditava. Estavam por todo o lado. Mal comecei a reparar neles a sala transformou-se num ninho de víboras. Havia livros em cima, por baixo, ao lado e atrás do sofá. Nas mesas, nas cadeiras, dentro dos móveis, e até, espanto dos espantos, alguns arrumados nas prateleiras.
Transferi a obsessão para o resto da casa. Cozinha, casas de banho, corredor, quartos, armários e despensa. 1232. Mil duzentos e trinta e dois.
É claro que o meu súbito frenesi não passou despercebido à tia Júlia. Enquanto eu contava os livros na despensa (onde fui descobrir a “Mensagem” de Fernando Pessoa entre as latas de grão e o acúcar) ela veio meter o nariz para me perguntar, “Estás à procura de alguma coisa?”
“Não, mas adivinhe o que achei entre as latas do grão”
“A Mensagem, de Fernando Pessoa”.
“Como é que sabe?!”
“Fui eu que o pus aí. O que estás a fazer?”
“Estou a contar os livros que tem em casa”.
“Oh, mas aqui em casa não há quase livros nenhuns! Eu detesto estar sempre a tropeçar neles e ponho tudo no sotão.”
“Há um sotão neste prédio?”
“Toma!” Tirou do bolso uma chave e deu-ma. “Vai lá ver o sotão e deixa-me a despensa em paz.”
A sala estava, o que se podia chamar “arrumada”. A dona Otília estivera ali de manhã e, por onde ela passava, nada ficava torto, desalinhado ou poeirento. Num primeiro olhar, ninguém diria que esta divisão tinha livros. Mal nos apercebiamos de alguns sobre a mesa, outros sobre o piano, mais uns junto ao sofá, outros no parapeito da janela, outros… Comecei a contar. 123. Cento e vinte e três livros naquela sala. Eu nem acreditava. Estavam por todo o lado. Mal comecei a reparar neles a sala transformou-se num ninho de víboras. Havia livros em cima, por baixo, ao lado e atrás do sofá. Nas mesas, nas cadeiras, dentro dos móveis, e até, espanto dos espantos, alguns arrumados nas prateleiras.
Transferi a obsessão para o resto da casa. Cozinha, casas de banho, corredor, quartos, armários e despensa. 1232. Mil duzentos e trinta e dois.
É claro que o meu súbito frenesi não passou despercebido à tia Júlia. Enquanto eu contava os livros na despensa (onde fui descobrir a “Mensagem” de Fernando Pessoa entre as latas de grão e o acúcar) ela veio meter o nariz para me perguntar, “Estás à procura de alguma coisa?”
“Não, mas adivinhe o que achei entre as latas do grão”
“A Mensagem, de Fernando Pessoa”.
“Como é que sabe?!”
“Fui eu que o pus aí. O que estás a fazer?”
“Estou a contar os livros que tem em casa”.
“Oh, mas aqui em casa não há quase livros nenhuns! Eu detesto estar sempre a tropeçar neles e ponho tudo no sotão.”
“Há um sotão neste prédio?”
“Toma!” Tirou do bolso uma chave e deu-ma. “Vai lá ver o sotão e deixa-me a despensa em paz.”
mania da perseguiçao
Hoje no metro o pedinte-acordeonista fez um medley que me chamou a atenção:
somewhere over the rainbow - strangers in the night - the look of love
Olhei em volta e fiquei mais descansado ao perceber que só eu é que estava a achar aquilo muito gay.
somewhere over the rainbow - strangers in the night - the look of love
Olhei em volta e fiquei mais descansado ao perceber que só eu é que estava a achar aquilo muito gay.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2005
015 - Os Herdeiros
Comecei por perguntar à minha mãe, “o que faz a tia Júlia?”
“Que pergunta é essa? Ela não faz nada, quer dizer, trata da casa e de vocês e já é mais que muito.”
“Mas ela não faz mais nada? Nunca teve uma profissão?”
“Não.”
“Então e o dinheiro? Ela tem mais dinheiro do que nós.”
“António, não te quero a falar assim!” E pôs-se a olhar para mim de lado, a colher da sopa ainda na mão que lhe amparava o queixo. “A tia Júlia tem uma pensão que tira do que herdou da família e do marido”.
“Como é que sabes?”
“Como, como é que sei? Sei e pronto! Cala-te lá com isso e come a sopa. É muito feio falar de dinheiro à mesa.”
Nessa noite, já na cama, pus-me a pensar na vida da tia Júlia. Ela estava sempre em casa, ou pelo menos era essa a impressão que eu tinha, mas eu só passava lá as tardes e às vezes os serões. Mesmo o Jaime estava fora todas as manhãs, algumas tardes e, ao fim de semana, nós saíamos muitas vezes com a minha mãe. Também nas férias, fossemos nós nalguma excursão ou passeio, a tia Júlia recusava-se sempre a acompanhar-nos.
O que fazia ela? Duas vezes por semana ia lá a Dona Otília fazer as limpezas e engomar a roupa (e continua a ir), por isso, de afazeres domésticos, a tia Júlia pouco mais fazia que cozinhar e, de vez em quando, coser as meias do Jaime. Era frequente eu encontrá-la a ler, sentada num cadeirão do escritório ou da sala mas, embora ela parecesse sempre à vontade para falar de qualquer assunto, da cultura helénica à teoria quântica, passando pelas filosofias de Nietzsche, Kant e Santo Agostinho, a julgar pelo que costumava ter nas mãos, ela pouco mais lia que policiais da Agatha Christie.
Ao pensar nisso, ocorreu-me outra questão ainda mais estranha. De onde vinham os livros que apareciam lá por casa? É que não havia nenhuma grande estante ou biblioteca, nenhum tesouro de Próspero, e no entanto, naquela casa, tinham-me passado pelas mãos todas as comédias e tragédias de Shakespeare, todas as aventuras algumas vez escritas por Julio Verne, Tolkien, Enid Blyton e Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada. Já para não falar nos dicionários, enciclopédias e todo o género de tomos informativos ou fantásticos que apareciam de algum lado sempre que se precisava deles. O total oposto da minha casa, onde a minha mãe os ordenava com um militarismo alemão na estante que cobria uma parede inteira da sala.
Em casa da tia Júlia havia sempre livros, mais livros aliás que na biblioteca da escola, que eu achava sempre diminuta, e, no entanto, eu não me conseguia recordar de alguma vez os ter ido procurar a uma prateleira. Eles estavam em todo o lado mas não eram postos em sítio nenhum, simplesmente flutuavam por ali. E quando eu pensava na enorme quantidade deles que já tinha lido, mesmo com apenas 13 anos, não conseguia perceber onde eles se iam enfiar antes e depois de serem lidos.
Nessa noite não dormi.
“Que pergunta é essa? Ela não faz nada, quer dizer, trata da casa e de vocês e já é mais que muito.”
“Mas ela não faz mais nada? Nunca teve uma profissão?”
“Não.”
“Então e o dinheiro? Ela tem mais dinheiro do que nós.”
“António, não te quero a falar assim!” E pôs-se a olhar para mim de lado, a colher da sopa ainda na mão que lhe amparava o queixo. “A tia Júlia tem uma pensão que tira do que herdou da família e do marido”.
“Como é que sabes?”
“Como, como é que sei? Sei e pronto! Cala-te lá com isso e come a sopa. É muito feio falar de dinheiro à mesa.”
Nessa noite, já na cama, pus-me a pensar na vida da tia Júlia. Ela estava sempre em casa, ou pelo menos era essa a impressão que eu tinha, mas eu só passava lá as tardes e às vezes os serões. Mesmo o Jaime estava fora todas as manhãs, algumas tardes e, ao fim de semana, nós saíamos muitas vezes com a minha mãe. Também nas férias, fossemos nós nalguma excursão ou passeio, a tia Júlia recusava-se sempre a acompanhar-nos.
O que fazia ela? Duas vezes por semana ia lá a Dona Otília fazer as limpezas e engomar a roupa (e continua a ir), por isso, de afazeres domésticos, a tia Júlia pouco mais fazia que cozinhar e, de vez em quando, coser as meias do Jaime. Era frequente eu encontrá-la a ler, sentada num cadeirão do escritório ou da sala mas, embora ela parecesse sempre à vontade para falar de qualquer assunto, da cultura helénica à teoria quântica, passando pelas filosofias de Nietzsche, Kant e Santo Agostinho, a julgar pelo que costumava ter nas mãos, ela pouco mais lia que policiais da Agatha Christie.
Ao pensar nisso, ocorreu-me outra questão ainda mais estranha. De onde vinham os livros que apareciam lá por casa? É que não havia nenhuma grande estante ou biblioteca, nenhum tesouro de Próspero, e no entanto, naquela casa, tinham-me passado pelas mãos todas as comédias e tragédias de Shakespeare, todas as aventuras algumas vez escritas por Julio Verne, Tolkien, Enid Blyton e Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada. Já para não falar nos dicionários, enciclopédias e todo o género de tomos informativos ou fantásticos que apareciam de algum lado sempre que se precisava deles. O total oposto da minha casa, onde a minha mãe os ordenava com um militarismo alemão na estante que cobria uma parede inteira da sala.
Em casa da tia Júlia havia sempre livros, mais livros aliás que na biblioteca da escola, que eu achava sempre diminuta, e, no entanto, eu não me conseguia recordar de alguma vez os ter ido procurar a uma prateleira. Eles estavam em todo o lado mas não eram postos em sítio nenhum, simplesmente flutuavam por ali. E quando eu pensava na enorme quantidade deles que já tinha lido, mesmo com apenas 13 anos, não conseguia perceber onde eles se iam enfiar antes e depois de serem lidos.
Nessa noite não dormi.
Declaraçao de amor
Chegou hoje pelo correio, a tempo de se tornar no meu disco do ano, provavelmente um dos discos da minha vida.
É certo que, como um amigo meu os definiu, os The White Birch, soam como o sapo cocas a cantar canções de embalar. Mas é precisamente essa a magia da coisa. Eu não consigo imaginar nada mais bonito e reconfortante que o sapo cocas à beira da minha cama, a ajeitar-me os cobertores enquanto canta uma canção de embalar e depois a dar-me um beijinho na testa quando eu finalmente adormeço.
ou
Uma vez tive um sonho daqueles muito simbólicos: Eu andava ao longo de um muro de pedra, equilibrando-me à la humpty-dumpty enquanto andava cantava uma canção tão bonita que me fazia chorar. Mas eu chorava sangue e doía. Apesar disso, eu continuava a cantar porque a canção era a única coisa capaz de me consolar. Embora não me lembre como era a canção, era certamente muito parecida às músicas dos The White Birch.
www.thewhitebirch.no
e se fosse só a música... eis uma das letras que me arrepia todo:
Stand over me
What if I fall?
What if I fall too low to see?
If you can
Fall over me
And if you stand
And if you stand too tall to reach
If you can
Stand over me
Then in your hand
When you can catch me
In my flight
Fight over me
And if I fall
And if I crumble at your feet
Will you stand?
Stand over me
É certo que, como um amigo meu os definiu, os The White Birch, soam como o sapo cocas a cantar canções de embalar. Mas é precisamente essa a magia da coisa. Eu não consigo imaginar nada mais bonito e reconfortante que o sapo cocas à beira da minha cama, a ajeitar-me os cobertores enquanto canta uma canção de embalar e depois a dar-me um beijinho na testa quando eu finalmente adormeço.
ou
Uma vez tive um sonho daqueles muito simbólicos: Eu andava ao longo de um muro de pedra, equilibrando-me à la humpty-dumpty enquanto andava cantava uma canção tão bonita que me fazia chorar. Mas eu chorava sangue e doía. Apesar disso, eu continuava a cantar porque a canção era a única coisa capaz de me consolar. Embora não me lembre como era a canção, era certamente muito parecida às músicas dos The White Birch.
www.thewhitebirch.no
e se fosse só a música... eis uma das letras que me arrepia todo:
Stand over me
What if I fall?
What if I fall too low to see?
If you can
Fall over me
And if you stand
And if you stand too tall to reach
If you can
Stand over me
Then in your hand
When you can catch me
In my flight
Fight over me
And if I fall
And if I crumble at your feet
Will you stand?
Stand over me
terça-feira, 13 de dezembro de 2005
a nostalgia dos livros lidos
Há livros que quando se olha para eles nos dão uma pequena pontada de dor por já não os podermos ler de novo pela primeira vez. Dói-me principalmente este, que foi agora reeditado com uma capa muito mais bonita do que a da edição que eu li há uns anos.
"Little,big" de John Crowley é um daqueles meteoros literários que, por passarem ao lado de tudo e de todos, se tornam ainda mais raros. Não conheço ninguém que tenha lido isto e bem tento impingi-lo a toda a gente mas ninguém lhe pega... Admito que é difícil, eu próprio tive de o ler em pequenas doses. É uma história bizarra mas envolvente e a linguagem são floreados que transformam as descrições dos momentos mais banais em feitos de pura magia. Infelizmente, não há tradução para português, mas mesmo que houvesse duvido que conseguisse fazer jus ao original.
Não é o livro da minha vida, mas é o suplente para essa função.
"Little,big" de John Crowley é um daqueles meteoros literários que, por passarem ao lado de tudo e de todos, se tornam ainda mais raros. Não conheço ninguém que tenha lido isto e bem tento impingi-lo a toda a gente mas ninguém lhe pega... Admito que é difícil, eu próprio tive de o ler em pequenas doses. É uma história bizarra mas envolvente e a linguagem são floreados que transformam as descrições dos momentos mais banais em feitos de pura magia. Infelizmente, não há tradução para português, mas mesmo que houvesse duvido que conseguisse fazer jus ao original.
Não é o livro da minha vida, mas é o suplente para essa função.
Madeira morta
Lá por casa os serões têm sido ocupados a ver os DVDs da primeira série de Deadwood, uma série da HBO que é uma deliciosa cábóiada telenovelesca onde nada de especial acontece mas que nos deixa pregados ao écran. O nosso personagem favorito é o mau da fita, dono do saloon/bordel/antro-de-vício-e-pecado, que não diz uma frase sem palavrão memorável. A minha favorita: "Would you like a blowjob while we talk?"
O bom da fita é algo desinteressante, mas causou algum furor lá no sofá nos breve segundos em que apareceu sem camisa, motivo que só por si já seria suficiente para ver o resto dos episódios....mas nós gostamos mesmo é dos diálogos... (pelo seu valor...humm... lírico).
Bad guy (esquerda) meets good guy (direita)
O bom da fita é algo desinteressante, mas causou algum furor lá no sofá nos breve segundos em que apareceu sem camisa, motivo que só por si já seria suficiente para ver o resto dos episódios....mas nós gostamos mesmo é dos diálogos... (pelo seu valor...humm... lírico).
Bad guy (esquerda) meets good guy (direita)
014 - Os Herdeiros
Sabes, eu sempre senti um ciúme secreto do Jaime. Por ser ele quem vivia com a tia Júlia. E é estranho estar a dizer, escrever isto pela primeira vez. Ainda mais nestas circunstâncias tão…oh, tão irónicas!
Não duvides, por favor, do meu amor pela minha mãe. Mas há sempre um apelo especial naquilo que não se possui. Eu invejei muito tudo o que o Jaime tinha. Os brinquedos - mais e mais caros do que os meus. A escola privada - com uniformes, bons professores e festas de Natal com teatro e prendas. As aulas de tiro com arco, judo e natação. Mas acima de tudo, o facto de, ao fim do dia, ele continuar na casa da tia Júlia, de dormir lá, de ser, de facto, aquela a sua casa. E de a tia Júlia ser mais dele do que minha.
Mas, é claro, isso eram tolices infantis, e eu sei o esforço que a tia Júlia sempre fez para nos tratar como iguais, mesmo com todas as diferenças de posse. E tão difícil que isso deve ter sido para ela, sei eu agora. Bastou-me olhar para ti, Joana.
Além disso, o Jaime sempre foi o mais generoso dos irmãos. O que tinha ele que eu não tivesse? Ele sempre se fez uma parte de mim. E vice versa.
Por isso eu tinha a certeza de que, se eu não sabia que as vizinhas chamavam bruxa à tia Júlia, menos o sabia ele. E foi por isso que resolvi descobrir o que se escondia de verdade por trás daquela história. Se algo houvesse naquilo que pudesse magoar o Jaime, devia primeiro magoar-me a mim.
Não duvides, por favor, do meu amor pela minha mãe. Mas há sempre um apelo especial naquilo que não se possui. Eu invejei muito tudo o que o Jaime tinha. Os brinquedos - mais e mais caros do que os meus. A escola privada - com uniformes, bons professores e festas de Natal com teatro e prendas. As aulas de tiro com arco, judo e natação. Mas acima de tudo, o facto de, ao fim do dia, ele continuar na casa da tia Júlia, de dormir lá, de ser, de facto, aquela a sua casa. E de a tia Júlia ser mais dele do que minha.
Mas, é claro, isso eram tolices infantis, e eu sei o esforço que a tia Júlia sempre fez para nos tratar como iguais, mesmo com todas as diferenças de posse. E tão difícil que isso deve ter sido para ela, sei eu agora. Bastou-me olhar para ti, Joana.
Além disso, o Jaime sempre foi o mais generoso dos irmãos. O que tinha ele que eu não tivesse? Ele sempre se fez uma parte de mim. E vice versa.
Por isso eu tinha a certeza de que, se eu não sabia que as vizinhas chamavam bruxa à tia Júlia, menos o sabia ele. E foi por isso que resolvi descobrir o que se escondia de verdade por trás daquela história. Se algo houvesse naquilo que pudesse magoar o Jaime, devia primeiro magoar-me a mim.
013 - Os Herdeiros
Demorei mais tempo do que o costume a regressar a casa, pensando no que de facto aquilo queria dizer. Nós éramos todos tão pouco religiosos e supersticiosos. Principalmente a tia Júlia que, todos os natais, insistia em nos contar a “verdadeira” história de São Nicolau, pondo especial ênfase na parte das criancinhas esquartejadas dentro da salgadeira (que, admito, era a nossa parte favorita). Desmistificar, era a palavra de ordem para tudo o que a tia Júlia dizia e fazia. Porquê então aquele título de bruxa? Não era a palavra que me perturbava… o quê, então?
Ao fundo da rua, a Sé de Lisboa estava já iluminada e eu lembro-me de ter sido essa uma das vezes em que mais fortemente uma vertigem histórica se apossou de mim. É raro pensar com tanta consciência em tudo o que já se passou no sítio onde vivemos. É uma colina de lisboa que já viu fenícios, gregos, romanos, mouros, cristãos. As nossas ruas ficam entre a praça do Rossio, onde já se queimaram bruxas, judeus e sodomitas e a prisão do limoeiro onde, mais recentemente, se torturaram, não com menos requinte, intelectuais e liberais diversos. Ou seja, tudo pessoas com quem a nossa família reúne afinidades. E no entanto, como a minha mãe sempre me disse, que tempos abençoados estes em que vivemos, apesar de tudo, em que todos os livros do mundo estão à nossa disposição.
A minha mãe, que depois vinha abraçar-me e dizer-me. “Sabes a sorte que temos? Eu, que nasci depois da guerra, e tu, que nasceste depois da ditadura? És uma criança abençoada, António. Aproveita a sorte de teres nascido agora”. (Ela ainda repete isto, de vez em quando.)
Eu, naquele momento, saco cheio de batatas e cebolas, a caminho de casa, senti-me de facto previligiado, porque a minha mente, por segundos, quase conseguia ter a noção da enormidade do que se passara ali, naquela rua, naquela colina, naquela cidade, para que eu pudesse ir assim, tão despreocupado para casa, sem medo de bruxas. Uma vertigem histórica em que desfilava uma crescente erosão de preconceitos e superstições que permitiam que eu, nesse preciso momento, soubesse que os meus valores me permitiriam olhar lucidamente para este perturbante facto, de ter uma “bruxa” na família. E essa lucidez, que eu sempre tenho prezado tanto, devia-se, deve-se, precisamente, à tia Júlia.
Percebi nesse momento, que não era de facto a palavra “bruxa” que me perturbava, mas a implicação de que havia algo na vida da tia Júlia que me era desconhecido, talvez vedado. Ou, pior ainda, algo que ela ocultava de mim julgando que eu não fosse capaz de compreender.
Ao fundo da rua, a Sé de Lisboa estava já iluminada e eu lembro-me de ter sido essa uma das vezes em que mais fortemente uma vertigem histórica se apossou de mim. É raro pensar com tanta consciência em tudo o que já se passou no sítio onde vivemos. É uma colina de lisboa que já viu fenícios, gregos, romanos, mouros, cristãos. As nossas ruas ficam entre a praça do Rossio, onde já se queimaram bruxas, judeus e sodomitas e a prisão do limoeiro onde, mais recentemente, se torturaram, não com menos requinte, intelectuais e liberais diversos. Ou seja, tudo pessoas com quem a nossa família reúne afinidades. E no entanto, como a minha mãe sempre me disse, que tempos abençoados estes em que vivemos, apesar de tudo, em que todos os livros do mundo estão à nossa disposição.
A minha mãe, que depois vinha abraçar-me e dizer-me. “Sabes a sorte que temos? Eu, que nasci depois da guerra, e tu, que nasceste depois da ditadura? És uma criança abençoada, António. Aproveita a sorte de teres nascido agora”. (Ela ainda repete isto, de vez em quando.)
Eu, naquele momento, saco cheio de batatas e cebolas, a caminho de casa, senti-me de facto previligiado, porque a minha mente, por segundos, quase conseguia ter a noção da enormidade do que se passara ali, naquela rua, naquela colina, naquela cidade, para que eu pudesse ir assim, tão despreocupado para casa, sem medo de bruxas. Uma vertigem histórica em que desfilava uma crescente erosão de preconceitos e superstições que permitiam que eu, nesse preciso momento, soubesse que os meus valores me permitiriam olhar lucidamente para este perturbante facto, de ter uma “bruxa” na família. E essa lucidez, que eu sempre tenho prezado tanto, devia-se, deve-se, precisamente, à tia Júlia.
Percebi nesse momento, que não era de facto a palavra “bruxa” que me perturbava, mas a implicação de que havia algo na vida da tia Júlia que me era desconhecido, talvez vedado. Ou, pior ainda, algo que ela ocultava de mim julgando que eu não fosse capaz de compreender.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2005
012 - Os Herdeiros
Se a minha mãe começara por me despejar à tarde na casa da tia Júlia fora por puro desespero. O horário dela na faculdade era bastante preenchido e o que ganhava não era suficiente para se poder dar ao luxo de me pôr num sitio que me ocupasse os tempos livres e onde se certificassem que eu fazia os trabalhos de casa. E, quando a tia Júlia me pôs a aprender piano, a única coisa que pediu à minha mãe foi autorização. E ela, nesses termos, não se lembrou de nenhum motivo contra.
A vida social da minha mãe era quase nula. Trabalho, casa, trabalho e, os tempos livres que não passava comigo, ocupava-os também com trabalho na sua vertente mais lúdica, lendo literatura alemã. Suponho que em tempos isso fora um prazer. Agora tornara-se só parte da profissão. Até o plano dela de me ensinar alemão era constantemente adiado porque, depois de passar grande parte do dia a dar aulas, em casa preferia ficar calada. Não tinha amigos e a família resumia-se a nós dois e uns primos dela, que, embora não fossem os tais ramos mortos da árvore genealógica, continuavam a viver na Alemanha e ela já nem postais de Natal lhes mandava.
Os serões em cada da tia Júlia, cuja frequência se foi progressivamente transformando num hábito diário, eram para ela um escape à monotonia e mediocridade académica. Ficava geralmente apenas a ouvir-nos mas, de vez em quando, observava que falávamos de coisas anormalmente adultas e culturais. E depois queixava-se de que, desde que deixara de seguir as novelas, não tinha mais assunto para conversas na universidade.
Eu nunca compreendera bem as reticências que ela punha em relação à tia Júlia porque, apesar de termos começado a passar muito tempo lá, ela nunca deixava de manter uma certa frieza que nem sequer lhe vinha dos genes alemães. A princípio, suponho que, de um modo inconsciente, liguei isso ao suicídio do meu pai mas, como esse era o assunto de que nunca se falava apesar de estar no cerne do nó que unira as nossas famílias, deixei que continuasse imerso nas névoas do tabu.
Eu já devia ter uns 13 anos quando, finalmente, me tive de confrontar com uma parte da vida da tia Júlia que, embora estivesse estado sempre à minha frente, eu nunca tinha verdadeiramente visto, ou tomado consciência que existisse, mas que clarificou os motivos porque a minha mãe mantinha o seu relacionamente com a tia Júlia nuns termos tão rígidos.
Aconteceu da maneira mais prosaica, ao fim de uma tarde em que a minha mãe me pedira para ir comprar batatas e cebolas à mercearia da esquina (que fica precisamente na esquina da rua entre a da tia Júlia e a nossa). Eu esperava para pagar, enquanto uma freguesa à minha frente falava com a dona do estabelecimento. Eu não seguia a conversa porque olhava para os chocolates, mas a certo ponto uma delas começou a falar de uma mulher do bairro que, pela descrição, eu identifiquei imediatamente como sendo a tia Júlia, embora o nome não fosse mencionado. E depois, referiu-se a ela como bruxa. E não era um insulto, ou mera difamação porque (e isto foi o que mais me surpreendeu), ao dizer a palavra, a sua voz baixou para um tom de grande respeito, ou reverência mesmo.
A vida social da minha mãe era quase nula. Trabalho, casa, trabalho e, os tempos livres que não passava comigo, ocupava-os também com trabalho na sua vertente mais lúdica, lendo literatura alemã. Suponho que em tempos isso fora um prazer. Agora tornara-se só parte da profissão. Até o plano dela de me ensinar alemão era constantemente adiado porque, depois de passar grande parte do dia a dar aulas, em casa preferia ficar calada. Não tinha amigos e a família resumia-se a nós dois e uns primos dela, que, embora não fossem os tais ramos mortos da árvore genealógica, continuavam a viver na Alemanha e ela já nem postais de Natal lhes mandava.
Os serões em cada da tia Júlia, cuja frequência se foi progressivamente transformando num hábito diário, eram para ela um escape à monotonia e mediocridade académica. Ficava geralmente apenas a ouvir-nos mas, de vez em quando, observava que falávamos de coisas anormalmente adultas e culturais. E depois queixava-se de que, desde que deixara de seguir as novelas, não tinha mais assunto para conversas na universidade.
Eu nunca compreendera bem as reticências que ela punha em relação à tia Júlia porque, apesar de termos começado a passar muito tempo lá, ela nunca deixava de manter uma certa frieza que nem sequer lhe vinha dos genes alemães. A princípio, suponho que, de um modo inconsciente, liguei isso ao suicídio do meu pai mas, como esse era o assunto de que nunca se falava apesar de estar no cerne do nó que unira as nossas famílias, deixei que continuasse imerso nas névoas do tabu.
Eu já devia ter uns 13 anos quando, finalmente, me tive de confrontar com uma parte da vida da tia Júlia que, embora estivesse estado sempre à minha frente, eu nunca tinha verdadeiramente visto, ou tomado consciência que existisse, mas que clarificou os motivos porque a minha mãe mantinha o seu relacionamente com a tia Júlia nuns termos tão rígidos.
Aconteceu da maneira mais prosaica, ao fim de uma tarde em que a minha mãe me pedira para ir comprar batatas e cebolas à mercearia da esquina (que fica precisamente na esquina da rua entre a da tia Júlia e a nossa). Eu esperava para pagar, enquanto uma freguesa à minha frente falava com a dona do estabelecimento. Eu não seguia a conversa porque olhava para os chocolates, mas a certo ponto uma delas começou a falar de uma mulher do bairro que, pela descrição, eu identifiquei imediatamente como sendo a tia Júlia, embora o nome não fosse mencionado. E depois, referiu-se a ela como bruxa. E não era um insulto, ou mera difamação porque (e isto foi o que mais me surpreendeu), ao dizer a palavra, a sua voz baixou para um tom de grande respeito, ou reverência mesmo.
Sair do armario
Ontem fui ver "O leão, a feiticeira e o guarda-fato" o primeiro filme da série das Crónicas de Nárnia. Felizmente li o livro na idade certa de 12 anos e talvez por isso tenha ficado com a impressão de que o livro é melhor que o filme, mas, admito que o filme, mesmo que eu já o ache um pouco infantil, ainda assim é incrivelmente bom.
Houve no entanto uma coisa que me surpreendeu: não a assombrosa qualidade de alguns efeitos especiais (já ninguém se espanta com os avanços da tecnologia) mas sim a péssima qualidade de outros. Por um lado, fazem um milhão de animais e criaturas falantes que são 100% credíveis (mesmo quando se reconhece imediatamente as vozes do Rupert Everett e da Dawn French, mas isso é problema meu que sou demasiado gay nalgumas coisas), por outro, aparecem cenas que, aparentemente já não deviam colocar qualquer problema técnico, como as personagens humanas sobre um fundo falso, mas que estão tão mal feitas que até dói. O que se passou, rapazes?! tinham os computadores todos ocupados a fazer os renderings do leão e por isso nessas cenas mais simples tiveram que recortar a película com a tesourinha das unhas?
Mas o que importa é que foi uma noite bem passada, com uma história bem contada e muitos rebuçados para os olhos.
Há muito subtexto que se pode ler naquilo, desde o leão se parecer com Jesus e o Ricardo coração de leão, até à interpretação mais esticada da necessidade de sair do armário para se entrar no mundo real.
Eu da minha parte, admito que há algumas coisas dentro do armário que deixam muitas saudades. O fauno, por exemplo ;-)
Houve no entanto uma coisa que me surpreendeu: não a assombrosa qualidade de alguns efeitos especiais (já ninguém se espanta com os avanços da tecnologia) mas sim a péssima qualidade de outros. Por um lado, fazem um milhão de animais e criaturas falantes que são 100% credíveis (mesmo quando se reconhece imediatamente as vozes do Rupert Everett e da Dawn French, mas isso é problema meu que sou demasiado gay nalgumas coisas), por outro, aparecem cenas que, aparentemente já não deviam colocar qualquer problema técnico, como as personagens humanas sobre um fundo falso, mas que estão tão mal feitas que até dói. O que se passou, rapazes?! tinham os computadores todos ocupados a fazer os renderings do leão e por isso nessas cenas mais simples tiveram que recortar a película com a tesourinha das unhas?
Mas o que importa é que foi uma noite bem passada, com uma história bem contada e muitos rebuçados para os olhos.
Há muito subtexto que se pode ler naquilo, desde o leão se parecer com Jesus e o Ricardo coração de leão, até à interpretação mais esticada da necessidade de sair do armário para se entrar no mundo real.
Eu da minha parte, admito que há algumas coisas dentro do armário que deixam muitas saudades. O fauno, por exemplo ;-)
terça-feira, 6 de dezembro de 2005
Ainda ha boas noticias
Hoje, nos jornais internacionais apareceram as primeiras fotografias e desenhos de um novo animal recentemente descoberto nas selvas de Borneo. Um bicho que é qualquer coisa entre o gato e a raposa.
É claro que a notícia tem destaque porque é um animal grande e verdadeiramente curioso, mas só na última década e apenas nas selvas de Borneo foram descobertas 361 espécies.
Notícias como estas são muito mais interessantes e relevantes que as dos dinossauros das presidenciais portuguesas, acho eu, que são espécies que já deviam estar extintas sem remorso.
É claro que a notícia tem destaque porque é um animal grande e verdadeiramente curioso, mas só na última década e apenas nas selvas de Borneo foram descobertas 361 espécies.
Notícias como estas são muito mais interessantes e relevantes que as dos dinossauros das presidenciais portuguesas, acho eu, que são espécies que já deviam estar extintas sem remorso.
011 - Os Herdeiros
As aulas eram às terças e quintas, supostamente durante as horas em que o Jaime ainda estivesse a fazer os trabalhos dele. Mas, em breve, era ele quem ficava à nossa espera, espreitando à porta da sala para ver se ainda íamos demorar muito, intrigado com os estranhos movimentos de solfejo que eu fazia enquanto entoava penosamente o nome das notas. E como a tia Júlia acabou por pagar horas extra à Runa, que não se importava nada de extender as aulas até ao limite da minha paciência (que era grande), passou a ser o Jaime a ficar impaciente e a entreter-se atazinando a tia Júlia para lá do razoável.
O castigo dele tomou a forma de aulas de tiro com arco. Na altura ninguém se questionou porquê, parecia apenas uma boa maneira de tirar o Jaime de casa às terças e quintas à tarde. Eu roí-me de inveja. É muito mais cool ser o Robin dos Bosques do que o Chopin. Quando ele apareceu lá em casa pela primeira vez com o arco e as flechas que ia usar nas aulas ficámos uma boa hora a olhar para elas, pousadas em cima da cama, numa reverência histérica e babada. É claro que quisémos brincar aos índios e cowboys mas a tia Júlia advertiu-nos logo que aquilo não era um brinquedo e que se nos ouvisse a ulular pelos corredores era ela quem nos arrancava o escalpe. Aquilo era uma actividade séria. Um desporto. Uma das provas olímpicas.
E para enfatizar a importância daquilo, enfadou-nos com a história das olimpíadas.
A Runa, por seu lado, apercebendo-se da minha súbita falta de concentração nas aulas, voltou a trazer discos. E ouvimos a abertura de “Guilherme Tell” de Rossini enquanto ela me contava a história dessa ópera. Que eu contei ao Jaime, à tia Júlia e à minha mãe nessa noite, enquanto ouviamos o disco, que eu pedira emprestado à Runa, e comiamos a sobremesa.
Essa foi a primeira noite em que a minha mãe acedeu a ficar para jantar. Na altura, eu era demasiado novo para entender pequenas subtilezas sociais, mas agora sei que essa noite foi a primeira grande vitória da tia Júlia. Conseguira finalmente juntar-nos aos quatro e começar qualquer coisa parecida com um lar.
O castigo dele tomou a forma de aulas de tiro com arco. Na altura ninguém se questionou porquê, parecia apenas uma boa maneira de tirar o Jaime de casa às terças e quintas à tarde. Eu roí-me de inveja. É muito mais cool ser o Robin dos Bosques do que o Chopin. Quando ele apareceu lá em casa pela primeira vez com o arco e as flechas que ia usar nas aulas ficámos uma boa hora a olhar para elas, pousadas em cima da cama, numa reverência histérica e babada. É claro que quisémos brincar aos índios e cowboys mas a tia Júlia advertiu-nos logo que aquilo não era um brinquedo e que se nos ouvisse a ulular pelos corredores era ela quem nos arrancava o escalpe. Aquilo era uma actividade séria. Um desporto. Uma das provas olímpicas.
E para enfatizar a importância daquilo, enfadou-nos com a história das olimpíadas.
A Runa, por seu lado, apercebendo-se da minha súbita falta de concentração nas aulas, voltou a trazer discos. E ouvimos a abertura de “Guilherme Tell” de Rossini enquanto ela me contava a história dessa ópera. Que eu contei ao Jaime, à tia Júlia e à minha mãe nessa noite, enquanto ouviamos o disco, que eu pedira emprestado à Runa, e comiamos a sobremesa.
Essa foi a primeira noite em que a minha mãe acedeu a ficar para jantar. Na altura, eu era demasiado novo para entender pequenas subtilezas sociais, mas agora sei que essa noite foi a primeira grande vitória da tia Júlia. Conseguira finalmente juntar-nos aos quatro e começar qualquer coisa parecida com um lar.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2005
010 - Os Herdeiros
A tia Júlia não fazia promessas em vão. Quando cheguei da escola, no dia seguinte, uma senhora alta, com um olhar penetrante esperava por mim na sala. A tia Júlia apresentou-nos e eu fiquei ainda mais intimidado ao saber que a minha professora era norueguesa. Apesar do seu sorriso e do sotaque divertido, aquilo não prometia vir a ter piada nenhuma, e o piano, regressado à sua habitual verticalidade, parecia rir-se de mim com os seus dentes restaurados. O Jaime fora recambiado para o quarto dele e depois também a tia Júlia se retirou para que eu pudesse ter a minha primeira aula de música. Porque, embora o plano fosse ensinarem-me a tocar piano, eu primeiro tinha de aprender música. Nas primeiras aulas pouco toquei. A Runa (era o nome da professora) teve de começar por me ensinar a ler e a escrever música, com enorme paciência. Durante semanas mergulhou-me no mundo dos compassos, claves, mínimas, semínimas e colcheias. Era um conceito interessante, como se podia escrever num papel os sons que se ouviam, mas aqueles símbolos não significavam nada para mim. A minha relação com aquilo era totalmente abstacta. E quando ela se apercebeu isso, compreendeu que tinha de começar por me fazer ouvir música. Por isso, durante algumas aulas pouco mais fizémos que dedicar-nos à audição de discos que ela trazia, começando por clássicos agradáveis e didáticos como “Pedro e o Lobo” de Prokofiev e “The young persons guide to the orchestra” de Britten, que ela ia comentando. Mas por fim chegou o momento que me marcaria a fogo. Quando eu, arrepiadinho até aos ossos pela abertura da “Carmina Burana” de Carl Orff, tive de lhe perguntar para confirmar:
“Mas isto está escrito? É possível ler ISTO de um papel?”
Ela deu uma gargalhada, mas depois, percebendo o que eu queria dizer, assentiu seriamente com a cabeça. E foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que me pôs na disposição de aprender tudo o que ela tivesse para me ensinar.
O Fortuna, velut luna…
“Mas isto está escrito? É possível ler ISTO de um papel?”
Ela deu uma gargalhada, mas depois, percebendo o que eu queria dizer, assentiu seriamente com a cabeça. E foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que me pôs na disposição de aprender tudo o que ela tivesse para me ensinar.
O Fortuna, velut luna…
sexta-feira, 2 de dezembro de 2005
Ainda nao foi desta
Há uma grande vantagem em ter uma profissão que traz dinheiro regularmente para casa porque, se eu andasse só nisto de ser artista, estava bem tramado. Assim, posso-me dar ao luxo de, como diria a Madonna, não comprometer a minha integridade artística, e até me divertir um bocadito quando me dão uma nega.
Hoje recebi um simpatiquíssimo email de outra editora a quem entreguei a maquete do meu livro de contos. Devo confessar que teria ficado mais espantado se o tivessem aceite, por isso até me diverti com os comentários dos dois consultores literários da editora que me foram enviados. Basicamente, ambos dizem que o texto está muito bem escrito e que tem "mérito literário" (e só isto já chegaria para me pôr de bom humor para as próximas semanas) mas que a temática... bem, deixo-vos uma citação da carta que um desses consultores escreveu a esse editor e que li com surpreendido agrado e até prefiro entender como elogiosa porque, vivendo eu um pouco desfasado da realidade, tendo a esquecer-me do impacto dos meus temas:
"Caro Editor X:
O texto que me enviou é daqueles que vejo, infelizmente, muito divulgados noutros países como os EUA, e não tanto, graças a Deus, entre nós. Não sei se a editora X está a pensar mudar o tipo de selecção a que nos habituou: sei que se o fizer perderá seguramente uma boa parte do seu público. É bem certo que, do ponto de vista estritamente literário, tenho visto bem pior pois o livro é bem escrito, e eu diria até que poderia ser lido com agrado. No entanto desaconselho vivamente a sua publicação. [...]"
Tenho de admitir que a aura de autor maldito que comentários destes me poderiam pôr em cima não me desagrada. Mas é um desperdício nesta fase! Espero que, no dia em que o livro venha a ver a luz do dia, haja antes um jornalista a escrever coisas destas para o livro vender muito e eu me poder tornar num verdadeiro autor maldito... mas milionário (que é o que interessa!).
Hoje recebi um simpatiquíssimo email de outra editora a quem entreguei a maquete do meu livro de contos. Devo confessar que teria ficado mais espantado se o tivessem aceite, por isso até me diverti com os comentários dos dois consultores literários da editora que me foram enviados. Basicamente, ambos dizem que o texto está muito bem escrito e que tem "mérito literário" (e só isto já chegaria para me pôr de bom humor para as próximas semanas) mas que a temática... bem, deixo-vos uma citação da carta que um desses consultores escreveu a esse editor e que li com surpreendido agrado e até prefiro entender como elogiosa porque, vivendo eu um pouco desfasado da realidade, tendo a esquecer-me do impacto dos meus temas:
"Caro Editor X:
O texto que me enviou é daqueles que vejo, infelizmente, muito divulgados noutros países como os EUA, e não tanto, graças a Deus, entre nós. Não sei se a editora X está a pensar mudar o tipo de selecção a que nos habituou: sei que se o fizer perderá seguramente uma boa parte do seu público. É bem certo que, do ponto de vista estritamente literário, tenho visto bem pior pois o livro é bem escrito, e eu diria até que poderia ser lido com agrado. No entanto desaconselho vivamente a sua publicação. [...]"
Tenho de admitir que a aura de autor maldito que comentários destes me poderiam pôr em cima não me desagrada. Mas é um desperdício nesta fase! Espero que, no dia em que o livro venha a ver a luz do dia, haja antes um jornalista a escrever coisas destas para o livro vender muito e eu me poder tornar num verdadeiro autor maldito... mas milionário (que é o que interessa!).
quinta-feira, 1 de dezembro de 2005
009 - Os Herdeiros
No dia seguinte, ao chegar da escola, dei com o piano totalmente esventrado na sala. O Jaime já tinha preparado uma platéia, dispondo os cadeirões de frente para o evento e sentara-se, em pasmo absoluto, a ver o afinador trabalhar.
Foi uma das tardes mais fascinantes de que me lembro. O senhor Pereira, que passaria a vir fazer-nos visitas mensais, para além de se dar ao trabalho de limpar todo o interior do piano, substituir martelos, feltros, molas e cordas, deu-se ao trabalho de nos explicar tudo o que fazia. E não se cansava de dizer, é um milagre, o estado disto. Mas, quando a tia Júlia lhe explicou provavelmente nunca ninguém o tocara, ficou-se a repetir, ah bem, ah bem… E assim ficámos a saber como o comprimento das cordas define a altura dos sons, para que serviam de facto os pedais (ver a maquinaria toda a sair do sítio quando se carregava neles era entusiasmante) e todo o complexo movimento mecânico que transmite, com espantosa precisão, a pressão das teclas aos martelos que batem nas cordas.
Fomos excepcionalmente libertos dos nossos deveres para observar todo o procedimento cirúrgico, com mais motivo ainda quando começou a afinação das cordas. Foi aí que percebemos que éramos meros amadores a fazer gemer o piano. O senhor Pereira suava profusamente alternando o esforço de puxar as cordas com o martelar intenso das cordas e os toques de diapasão (fascinante pedacinho de metal que, por precisar de tanta explicação, aumentou ainda mais a féria do senhor Pereira, que era pago à hora). O barulho para além de insuportável era irritantemente repetitivo. A tia Júlia até se lembrou subitamente de ir às compras e a vizinha de baixo veio bater à porta para saber o que se passava.
Mas no final, o senhor Pereira, embora suado, coberto de pó e já farto das nossas perguntas incessantes e dasastrada vontade de ajudar, brindou-nos com um pequeno concerto.
Abriu com uma escala que correu o piano de cima abaixo e que pôs o instrumento a ressoar tão harmoniosamente que o Jaime até me disse baixinho, ao ouvido: “ É como se fosse a Madalena, depois de exorcizada dos sete demónios”. E eu concordei, sem sequer me rir. Aquilo era pura e milagrosa magia. Era como se fosse outro piano.
Depois, foram as mãos do senhor Pereira que sofreram uma transformação, deixando de ser umas salsichas brutas e peludas que martelavam as teclas numa barulheira infernal para as acariciar velozmente com sons que só podiam ser uma pura manifestação de divindades celestes.
A tia Júlia nessa altura veio sentar-se ao nosso lado. E, quando o senhor Pereira acabou, tirou-me o sorriso da cara informando-me que no dia seguinte eu ia começar a aprender a tocar piano. Eu fiquei pregado no chão, esmagado pela enormidade do que me era pedido.
Foi uma das tardes mais fascinantes de que me lembro. O senhor Pereira, que passaria a vir fazer-nos visitas mensais, para além de se dar ao trabalho de limpar todo o interior do piano, substituir martelos, feltros, molas e cordas, deu-se ao trabalho de nos explicar tudo o que fazia. E não se cansava de dizer, é um milagre, o estado disto. Mas, quando a tia Júlia lhe explicou provavelmente nunca ninguém o tocara, ficou-se a repetir, ah bem, ah bem… E assim ficámos a saber como o comprimento das cordas define a altura dos sons, para que serviam de facto os pedais (ver a maquinaria toda a sair do sítio quando se carregava neles era entusiasmante) e todo o complexo movimento mecânico que transmite, com espantosa precisão, a pressão das teclas aos martelos que batem nas cordas.
Fomos excepcionalmente libertos dos nossos deveres para observar todo o procedimento cirúrgico, com mais motivo ainda quando começou a afinação das cordas. Foi aí que percebemos que éramos meros amadores a fazer gemer o piano. O senhor Pereira suava profusamente alternando o esforço de puxar as cordas com o martelar intenso das cordas e os toques de diapasão (fascinante pedacinho de metal que, por precisar de tanta explicação, aumentou ainda mais a féria do senhor Pereira, que era pago à hora). O barulho para além de insuportável era irritantemente repetitivo. A tia Júlia até se lembrou subitamente de ir às compras e a vizinha de baixo veio bater à porta para saber o que se passava.
Mas no final, o senhor Pereira, embora suado, coberto de pó e já farto das nossas perguntas incessantes e dasastrada vontade de ajudar, brindou-nos com um pequeno concerto.
Abriu com uma escala que correu o piano de cima abaixo e que pôs o instrumento a ressoar tão harmoniosamente que o Jaime até me disse baixinho, ao ouvido: “ É como se fosse a Madalena, depois de exorcizada dos sete demónios”. E eu concordei, sem sequer me rir. Aquilo era pura e milagrosa magia. Era como se fosse outro piano.
Depois, foram as mãos do senhor Pereira que sofreram uma transformação, deixando de ser umas salsichas brutas e peludas que martelavam as teclas numa barulheira infernal para as acariciar velozmente com sons que só podiam ser uma pura manifestação de divindades celestes.
A tia Júlia nessa altura veio sentar-se ao nosso lado. E, quando o senhor Pereira acabou, tirou-me o sorriso da cara informando-me que no dia seguinte eu ia começar a aprender a tocar piano. Eu fiquei pregado no chão, esmagado pela enormidade do que me era pedido.
quarta-feira, 30 de novembro de 2005
008 - Os Herdeiros
Havia um piano em casa da tia Júlia. Estava plantado na sala, verticalmente encostado a uma parede, no lugar onde se esperaria uma televisão, e devia ter começado a criar raízes aí no século XIX. Fazia tão parte da casa como o estuque trabalhado dos tectos e certamente sobrevivera a todas as mudanças de proprietários do apartamento. Era um pouco como o actual frigorífico, que é o utensílio que fica para trás, quando se vende uma casa. Aposto que, na altura de uma mudança, aquele piano, ganhava nomes como “traste monstruoso” ou “elefante desafinado”. Era um objecto esquecido e a única utilidade que ainda tinha era como suporte de molduras e bibelots. Mas dava um certo “ar” à sala, e julgo que era por isso que nem mesmo a tia Júlia, que era tão prática e pouco dada a “ares”, o deixara ficar. E também, não se conseguia deixar de ter um pouco de pena daquele objecto.
Outra característica do piano era ter um efeito magnético em momentos ociosos. Ninguém resistia, a dada altura, a abrir-lhe a tampa e carregar nas teclas. Os adultos que faziam isso, paravam imediatamente assim que a primeira nota, num volume ineperadamente alto, ecoava pelo prédio. Era um som de agonia metálica e mecânica tão insuportável que só se podia gemer em solidariedade com o pobre instrumento.
Mas as crianças, ou seja, eu e o Jaime, tinhamos um verdadeiro fascínio por aquilo e, em fantásticos duetos a quatro mãos, ou despiques à vez, aperfeicoávamos a arte de extorquir daquele objecto os mais arrepiantes, insuportáveis e massacrantes sons. O objectivo final era fazer com que a tia Júlia viesse lá de dentro ensandecida e gritasse o seu habitual “Pelos sete demónios de Madalena!!!”, que era a sua expressão máxima de exasperação e que nos deixava sempre em convulsões de riso histérico.
A brincadeira tomou tais proporções que a tia Júlia teve de tomar medidas drásticas. E fui eu quem fez o copo transbordar com a última gota de água.
Os meus mais solitários momentos de ócio eram passados naquela sala, nas tardes em que eu tinha de esperar que o Jaime acabasse os trabalhos de casa dele. A tia Júlia normalmente deixava-me com um livro e ia para a cozinha tratar dos afazeres domésticos. Mas isto passou-se numa fase anterior àquela que te descrevi, em que o tráfico clandestino de livros me andava a alimentar um vicio de leitura. Isto de que te estou a falar passou-se quando eu tinha sete anos e a única coisa que me interessava era que o Jaime se despachasse para irmos montar a pista de carros para fazermos corridas. Não havia livro no mundo capaz de merecer a minha atenção, nesses momentos. E a minha fonte de consolo era aquele piano, que, com a sua voz de pecador torturado num círculo fundo do inferno, era a única coisa capaz de expressar o que me ia na alma.
E por mais raspanetes, e mesmo promessas de tareia que a tia Júlia me fizesse, eu não conseguia ficar sentadinho nos cadeirões da sala, com um livro no colo. Pelo canto do olho, aquele mastodonte anti-melódico chamava-me sempre para uma sessão de catártica agonia sonora.
Até que um dia, vinda lá de dentro numa fúria, depois de me atirar com a praga dos sete demónios da Madalena, a tia Júlia olhou para mim seriamente e deve ter tido uma epifania. Em vez de me dar os açoites que o comum mortal adoraria descarregar em cima de mim, disse-me, numa voz gelada, que não estava para aturar os meus olhitos de bambi hipócritas:
“Muito bem! Esta foi a última vez que isto aconteceu. Agora vais-te sentar ali, ler o teu livrinho e ficar calado. E eu vou tratar imediatamente do teu castigo. Vais ver, meu menino… nem sabes o que te espera!”
E foi para o telefone pôr em acção o seu mais maquiavélico e diabólico plano, que acabaria por me moldar, irremediavelmente, a vida.
Outra característica do piano era ter um efeito magnético em momentos ociosos. Ninguém resistia, a dada altura, a abrir-lhe a tampa e carregar nas teclas. Os adultos que faziam isso, paravam imediatamente assim que a primeira nota, num volume ineperadamente alto, ecoava pelo prédio. Era um som de agonia metálica e mecânica tão insuportável que só se podia gemer em solidariedade com o pobre instrumento.
Mas as crianças, ou seja, eu e o Jaime, tinhamos um verdadeiro fascínio por aquilo e, em fantásticos duetos a quatro mãos, ou despiques à vez, aperfeicoávamos a arte de extorquir daquele objecto os mais arrepiantes, insuportáveis e massacrantes sons. O objectivo final era fazer com que a tia Júlia viesse lá de dentro ensandecida e gritasse o seu habitual “Pelos sete demónios de Madalena!!!”, que era a sua expressão máxima de exasperação e que nos deixava sempre em convulsões de riso histérico.
A brincadeira tomou tais proporções que a tia Júlia teve de tomar medidas drásticas. E fui eu quem fez o copo transbordar com a última gota de água.
Os meus mais solitários momentos de ócio eram passados naquela sala, nas tardes em que eu tinha de esperar que o Jaime acabasse os trabalhos de casa dele. A tia Júlia normalmente deixava-me com um livro e ia para a cozinha tratar dos afazeres domésticos. Mas isto passou-se numa fase anterior àquela que te descrevi, em que o tráfico clandestino de livros me andava a alimentar um vicio de leitura. Isto de que te estou a falar passou-se quando eu tinha sete anos e a única coisa que me interessava era que o Jaime se despachasse para irmos montar a pista de carros para fazermos corridas. Não havia livro no mundo capaz de merecer a minha atenção, nesses momentos. E a minha fonte de consolo era aquele piano, que, com a sua voz de pecador torturado num círculo fundo do inferno, era a única coisa capaz de expressar o que me ia na alma.
E por mais raspanetes, e mesmo promessas de tareia que a tia Júlia me fizesse, eu não conseguia ficar sentadinho nos cadeirões da sala, com um livro no colo. Pelo canto do olho, aquele mastodonte anti-melódico chamava-me sempre para uma sessão de catártica agonia sonora.
Até que um dia, vinda lá de dentro numa fúria, depois de me atirar com a praga dos sete demónios da Madalena, a tia Júlia olhou para mim seriamente e deve ter tido uma epifania. Em vez de me dar os açoites que o comum mortal adoraria descarregar em cima de mim, disse-me, numa voz gelada, que não estava para aturar os meus olhitos de bambi hipócritas:
“Muito bem! Esta foi a última vez que isto aconteceu. Agora vais-te sentar ali, ler o teu livrinho e ficar calado. E eu vou tratar imediatamente do teu castigo. Vais ver, meu menino… nem sabes o que te espera!”
E foi para o telefone pôr em acção o seu mais maquiavélico e diabólico plano, que acabaria por me moldar, irremediavelmente, a vida.
terça-feira, 29 de novembro de 2005
007 - Os Herdeiros
Que acharás tu do Jaime? Tu só o viste duas vezes e ambas foram…bem…chamemos-lhes… circunstâncias invulgares.
O Jaime tem exactamente a mesma idade que eu. Isso, as viuvezes da minha mãe e da tia Júlia e a nossa vizinhaça foi o que de início fez com que passássemos tanto tempo juntos.
Mas uma coisa que acho curiosa, agora que olho para trás e vejo a mão da tia Júlia em tanta coisa, é que, embora ela cuidasse da nossa educação com igual interesse, nós nunca estudámos juntos na mesma escola. O Jaime era sempre posto em escolas particulares, liceus finos, universidade privada e eu estive sempre no ensino público.
Era só as tardes que passávamos juntos e, mesmo assim, muitas vezes, eu tinha de esperar que ele acabasse os trabalhos de casa, porque os meus faziam-se em meia-hora enquanto que os dele levavam a tarde quase toda. Mas eram depois as poucas horas ao fim do dia que valiam. Quando brincávamos juntos.
A minha mãe chegava antes do jantar para me vir buscar, vinda da universidade. Tão exausta que mal conseguia cozinhar. Mas, apesar dos meus pedidos insistentes, ela raramente cedia a ficar em casa da tia Júlia para jantar. Acho que ela queria aqueles momentos só para nós, mesmo que eu comesse a sopa de trombas, a pensar na nave de legos que eu e o jaime tinhamos começado a construir. E insistia em rever comigo os trabalhos de casa. Eram sufocantes, os trabalhos de casa. Uma idiotice. E as nossas noites passadas frente à televisão uma seca. Eu não me interessava pelas novelas e a minha mãe adormecia no sofá em menos de vinte minutos. Era nessas alturas que a ausência do jaime se assemelhava a uma dor. A minha mãe a ressonar, a sala iluminada pela aura inane da televisão, e o resto da casa às escuras. E a minha solidão.
Para além do Jaime, os meus únicos amigos eram os livros. O que não era exactamente saudável. Não preciso explicar-te em detalhe o que isto fazia à minha vida na escola. Eu era o menino que fazia sempre os trabalhos de casa, sabia tudo e tinha sempre boas notas. Odiavam-me de morte, na escola. E eu odiava aquele culto diário da estupidificação.
Quando foi que a minha mãe cedeu à tia Júlia? Não sei precisar a data. Mas começou certamente com as minhas aulas de Piano. E de norueguês.
O Jaime tem exactamente a mesma idade que eu. Isso, as viuvezes da minha mãe e da tia Júlia e a nossa vizinhaça foi o que de início fez com que passássemos tanto tempo juntos.
Mas uma coisa que acho curiosa, agora que olho para trás e vejo a mão da tia Júlia em tanta coisa, é que, embora ela cuidasse da nossa educação com igual interesse, nós nunca estudámos juntos na mesma escola. O Jaime era sempre posto em escolas particulares, liceus finos, universidade privada e eu estive sempre no ensino público.
Era só as tardes que passávamos juntos e, mesmo assim, muitas vezes, eu tinha de esperar que ele acabasse os trabalhos de casa, porque os meus faziam-se em meia-hora enquanto que os dele levavam a tarde quase toda. Mas eram depois as poucas horas ao fim do dia que valiam. Quando brincávamos juntos.
A minha mãe chegava antes do jantar para me vir buscar, vinda da universidade. Tão exausta que mal conseguia cozinhar. Mas, apesar dos meus pedidos insistentes, ela raramente cedia a ficar em casa da tia Júlia para jantar. Acho que ela queria aqueles momentos só para nós, mesmo que eu comesse a sopa de trombas, a pensar na nave de legos que eu e o jaime tinhamos começado a construir. E insistia em rever comigo os trabalhos de casa. Eram sufocantes, os trabalhos de casa. Uma idiotice. E as nossas noites passadas frente à televisão uma seca. Eu não me interessava pelas novelas e a minha mãe adormecia no sofá em menos de vinte minutos. Era nessas alturas que a ausência do jaime se assemelhava a uma dor. A minha mãe a ressonar, a sala iluminada pela aura inane da televisão, e o resto da casa às escuras. E a minha solidão.
Para além do Jaime, os meus únicos amigos eram os livros. O que não era exactamente saudável. Não preciso explicar-te em detalhe o que isto fazia à minha vida na escola. Eu era o menino que fazia sempre os trabalhos de casa, sabia tudo e tinha sempre boas notas. Odiavam-me de morte, na escola. E eu odiava aquele culto diário da estupidificação.
Quando foi que a minha mãe cedeu à tia Júlia? Não sei precisar a data. Mas começou certamente com as minhas aulas de Piano. E de norueguês.
segunda-feira, 28 de novembro de 2005
o "boobie break"
Voltando ao "mercador de veneza", uma das coisas que achei interessantes nesta nova adaptação cinematografica, foi o facto de, apesar de ser uma coisa toda muito british, visto a acção decorrer em Veneza, o realizador decidiu incluir uns quantos "boobie breaks" como homenagem ao audiovisual italiano.
O "boobie break", se não é uma invenção italiana, encontrou pelo menos na televisão italiana o ponto máximo de desenvolvimento. Consiste basicamente no seguinte: programa de variedades e ou cultura geral em geral, que, no momento em que começa a ficar demasiado sério, corta para intervenção de corpo de baile constituido por moçoilas avantajadas. Encontra também muita expressão na dialética entre o apresentador canastrão de fato escuro e a apresentadora boazona de vestidinho XS mas de decote XXXL. Ou seja, no momento em que as coisas ficam demasiado sérias, faz-se uns intervalo com uns melões, para nos lembrar das coisas boas da vida.
Isto é muito prático e pode ser aplicado na vida em geral como eu por vezes faço, utilizando aliás umas das grandes exportações italianas do boobie break: a Sabrina.
A coisa funciona assim:
Você está numa conferencia, no lançamento de um livro, a ver uma ópera, uma peça no Nacional ou um filme do Kiarostami. No momento em que se sentir prestes a ensandecer faça o seguinte:
1 - Lembre-se da Sabrina, recordando vividamente aquelas boinga-boingas balouçantes, constantemente em risco de saltarem para fora do bikini branco.
2 - Estremeça.
3 - Cantarole mentalmente "boys, boys, boys!"
O alívio é imediato e funciona indiscriminadamente com homos e heteros.
O "boobie break", se não é uma invenção italiana, encontrou pelo menos na televisão italiana o ponto máximo de desenvolvimento. Consiste basicamente no seguinte: programa de variedades e ou cultura geral em geral, que, no momento em que começa a ficar demasiado sério, corta para intervenção de corpo de baile constituido por moçoilas avantajadas. Encontra também muita expressão na dialética entre o apresentador canastrão de fato escuro e a apresentadora boazona de vestidinho XS mas de decote XXXL. Ou seja, no momento em que as coisas ficam demasiado sérias, faz-se uns intervalo com uns melões, para nos lembrar das coisas boas da vida.
Isto é muito prático e pode ser aplicado na vida em geral como eu por vezes faço, utilizando aliás umas das grandes exportações italianas do boobie break: a Sabrina.
A coisa funciona assim:
Você está numa conferencia, no lançamento de um livro, a ver uma ópera, uma peça no Nacional ou um filme do Kiarostami. No momento em que se sentir prestes a ensandecer faça o seguinte:
1 - Lembre-se da Sabrina, recordando vividamente aquelas boinga-boingas balouçantes, constantemente em risco de saltarem para fora do bikini branco.
2 - Estremeça.
3 - Cantarole mentalmente "boys, boys, boys!"
O alívio é imediato e funciona indiscriminadamente com homos e heteros.
006 - Os Herdeiros
Mas foi só depois da morte do senhor Augusto que começámos a frequentar mais a casa da tia Júlia. É um bocado parvo dizer “frequentar”, como se fosse um café, porque na verdade é a minha outra casa.
Voltei a ler o que te escrevi sobre aquele episódio do velório do senhor Augusto e percebi que, de facto, até aquela altura, a casa da tia Júlia era um território inexplorado para mim, com sítios proibidos, assustadores mesmo. E é muito estranho pensar nesses termos sobre um sítio que se tornou um lar para mim e no qual nada me é estranho. Nem mesmo o quarto da tia Júlia, que fora muito tempo o santo dos santos, porque nos últimos anos, durante a doença dela, juntávamo-nos todos aí, como se fosse a sala, como se nada se passasse…E sabes, nessa altura, nem por um momento me lembrei que fora naquela mesma cama, onde a tia Júlia ia morrendo aos poucos, que eu vira o homem de negro sentado ao lado do senhor Augusto. Nem quando me sentei no mesmo sítio onde ele se sentara e disse ao Jaime, igualmente drenado de sentimentos, constatando o facto, as mesmas palavras que dissera ao homem de negro: ela está morta.
Outra coisa que também se torna evidente no que escrevi é que, de certo modo, vinte anos depois, continuo sem perceber bem o que se passa à minha volta. Que tenho andado a viver como se a vida fosse uma festa, quando afinal é um velório.
Perdoa-me, Joana. É difícil combater toda esta morbidez quando durante uma semana (ou uma vida) se anda encharcado em morte e em sangue (e isto literalmente!!! A propósito, a ferida já se nota pouco. A cicatriz vai ficar grande, de certeza, mas fica um pouco escondida pela barba, que estou seriamente a pensar deixar crescer, e só aqui no quarto é que tenho tirado o cachecol. É estranho olhar-me no espelho. Fico mesmo diferente de barba. Bastou uma semana sem a fazer. E sinto-me diferente, também. Sabes, acho que estou a precisar de chorar, para verdadeiramente voltar a mim…)
Enfim, perdoa-me todas estas digressões mas é difícil não me perder. Ao ler o que já escrevi percebo que isto não será útil apenas para ti. Eu preciso voltar a sítios da minha vida que são como aquele corredor da casa da tia Júlia. Eu agora sei perfeitamente onde estão os quartos, a despensa, a cozinha. Sei onde vai dar cada uma das portas. Mas não é o hábito que torna as coisas mais compreensíveis. O hábito cega-te. Eu preciso voltar a esse corredor e tentar perceber o que vi quando abri as portas, em diferentes momentos da minha vida. Tenho a certeza que será aí que vou achar a pista de que preciso agora para encontrar o Jaime. As páginas amarelas de Salzburgo são inúteis. Talvez até consiga perceber do que é que ele anda a fugir. Porque, sabes, eu tenho uma séria suspeita do que é, mas, como o Dom Quixote alternativo, eu, neste momento, preferia não acreditar em gigantes…
Voltei a ler o que te escrevi sobre aquele episódio do velório do senhor Augusto e percebi que, de facto, até aquela altura, a casa da tia Júlia era um território inexplorado para mim, com sítios proibidos, assustadores mesmo. E é muito estranho pensar nesses termos sobre um sítio que se tornou um lar para mim e no qual nada me é estranho. Nem mesmo o quarto da tia Júlia, que fora muito tempo o santo dos santos, porque nos últimos anos, durante a doença dela, juntávamo-nos todos aí, como se fosse a sala, como se nada se passasse…E sabes, nessa altura, nem por um momento me lembrei que fora naquela mesma cama, onde a tia Júlia ia morrendo aos poucos, que eu vira o homem de negro sentado ao lado do senhor Augusto. Nem quando me sentei no mesmo sítio onde ele se sentara e disse ao Jaime, igualmente drenado de sentimentos, constatando o facto, as mesmas palavras que dissera ao homem de negro: ela está morta.
Outra coisa que também se torna evidente no que escrevi é que, de certo modo, vinte anos depois, continuo sem perceber bem o que se passa à minha volta. Que tenho andado a viver como se a vida fosse uma festa, quando afinal é um velório.
Perdoa-me, Joana. É difícil combater toda esta morbidez quando durante uma semana (ou uma vida) se anda encharcado em morte e em sangue (e isto literalmente!!! A propósito, a ferida já se nota pouco. A cicatriz vai ficar grande, de certeza, mas fica um pouco escondida pela barba, que estou seriamente a pensar deixar crescer, e só aqui no quarto é que tenho tirado o cachecol. É estranho olhar-me no espelho. Fico mesmo diferente de barba. Bastou uma semana sem a fazer. E sinto-me diferente, também. Sabes, acho que estou a precisar de chorar, para verdadeiramente voltar a mim…)
Enfim, perdoa-me todas estas digressões mas é difícil não me perder. Ao ler o que já escrevi percebo que isto não será útil apenas para ti. Eu preciso voltar a sítios da minha vida que são como aquele corredor da casa da tia Júlia. Eu agora sei perfeitamente onde estão os quartos, a despensa, a cozinha. Sei onde vai dar cada uma das portas. Mas não é o hábito que torna as coisas mais compreensíveis. O hábito cega-te. Eu preciso voltar a esse corredor e tentar perceber o que vi quando abri as portas, em diferentes momentos da minha vida. Tenho a certeza que será aí que vou achar a pista de que preciso agora para encontrar o Jaime. As páginas amarelas de Salzburgo são inúteis. Talvez até consiga perceber do que é que ele anda a fugir. Porque, sabes, eu tenho uma séria suspeita do que é, mas, como o Dom Quixote alternativo, eu, neste momento, preferia não acreditar em gigantes…
Ser ou nao ser gay, eis a questao
Este fim de semana viu-se lá em casa o DVD de "O mercador de Veneza". A recente adaptação da peça de Shakespeare ao cinema que causou alguma polémica por causa de uma suposta "carga homoerótica", especificamente uma beijoca entre o Jeremy Irons e o Ralph Fiennes. Não sei porquê tanto burburinho, os rapazes mal roçam as barbas! Estava á espera de mais língua. Mas enfim... De qualquer maneira tem de se levantar o polegar a esta adaptação (já que não se levanta mais nada...) porque, sem o sublinhar da relação amorosa entre aquelas duas personagens masculinas, o enredo não faz lá grande sentido.
Finalmente compreendo porque é que esta é daquelas peças do Shakespeare que quase ninguém conhece (eu inclusivé não fazia idéia do que era a história). Para começar, o enredo é complicado à brava e não se consegue tirar uma moral simples da coisa. Depois, a tal coisa de o subtexto homoerótico precisar de vir à tona para que os diálogos e motivações das personagens possam fazer sentido (santo deus, a ponto de as três personagens femininas se vestirem de rapaz e os respectivos maridos fazerem comentários alarves sobre ir para a cama com rapazitos!!! No tempo do Shakespeare em que só havia actores masculinos em palco a coisa devia ser de gritos...). E depois, a personagem complexa do judeu Shylock (aqui numa interpretação genial do Al Pacino) que, está-se mesmo a ver, numa má leitura, irá descambar sempre num tom anti-semítico.
Porque o que é curioso nesta adaptação é que, dando verdadeira expessura às personagens, se compreendem os seus motivos e, de repente, não há ninguém que seja verdadeiramente o mau da fita. São antes todos simples humanos, com falhas e imperfeições.
Curioso é ainda a actualidade da obra que, para além da mensagem sobre a intolerãncia, fala ainda sobre a questão do materialismo, ganância económica e endividamento. Quando se apanha o metro em Lisboa e se vê todos os anúncios de agencias dispostas a emprestar dinheiro para que nos possamos endividar neste natal não podemos deixar de nos perguntar: que diferença há entre três mil ducados e três mil euros? A resposta é: os três mil ducados vêm em moedas de ouro dentro de um cofre, os três mil euros são um número impresso no extracto do multibanco.
Finalmente compreendo porque é que esta é daquelas peças do Shakespeare que quase ninguém conhece (eu inclusivé não fazia idéia do que era a história). Para começar, o enredo é complicado à brava e não se consegue tirar uma moral simples da coisa. Depois, a tal coisa de o subtexto homoerótico precisar de vir à tona para que os diálogos e motivações das personagens possam fazer sentido (santo deus, a ponto de as três personagens femininas se vestirem de rapaz e os respectivos maridos fazerem comentários alarves sobre ir para a cama com rapazitos!!! No tempo do Shakespeare em que só havia actores masculinos em palco a coisa devia ser de gritos...). E depois, a personagem complexa do judeu Shylock (aqui numa interpretação genial do Al Pacino) que, está-se mesmo a ver, numa má leitura, irá descambar sempre num tom anti-semítico.
Porque o que é curioso nesta adaptação é que, dando verdadeira expessura às personagens, se compreendem os seus motivos e, de repente, não há ninguém que seja verdadeiramente o mau da fita. São antes todos simples humanos, com falhas e imperfeições.
Curioso é ainda a actualidade da obra que, para além da mensagem sobre a intolerãncia, fala ainda sobre a questão do materialismo, ganância económica e endividamento. Quando se apanha o metro em Lisboa e se vê todos os anúncios de agencias dispostas a emprestar dinheiro para que nos possamos endividar neste natal não podemos deixar de nos perguntar: que diferença há entre três mil ducados e três mil euros? A resposta é: os três mil ducados vêm em moedas de ouro dentro de um cofre, os três mil euros são um número impresso no extracto do multibanco.
sexta-feira, 25 de novembro de 2005
005 - Os Herdeiros
Mesmo que haja qualquer coisa de dura verdade nesta analogia de Dom Quixote e Sancho Pança, a nossa relação nunca foi essa. O Jaime para mim é um… (deus, a nossa família é tão complicada!)… um primo, um irmão, um amigo, um amante. É o meu…amado.
Mas deixa-me explicar-te a genealogia. É muito simples até, mas, não sei porquê (e, de momento, nem quero tentar saber porquê), enredámo-nos todos numa teia enganosa porque se trocaram nomes (e até pessoas…mas já lá chegaremos…).
O meu pai era, de facto, sobrinho da tia Júlia. Foi por isso que a minha mãe sempre lhe chamou isso. E eu, de ouvir a minha mãe, chamava-lhe isso também.
O Jaime chamava-lhe avó Júlia porque ela fora casada com o senhor Augusto, verdadeiro avô dele, mas ela não fora mãe do pai do Jaime.
Ou seja, eu e o Jaime se calhar nem somos suficientemente chegados por laços de sangue para sequer nos chamarmos primos. Crescemos em casas diferentes, mas fomos criados como se fôssemos irmãos. Morávamos com duas ruas de premeio, mas acabávamos sempre por fazer uma pequena família, eu e a minha mãe, o Jaime e a avó dele. É que, a toda a volta, para onde quer que se olhasse nos ramos da árvore geneológica, só havia mortos. E desses, evitava falar-se. Principalmente do meu pai, porque a minha mãe nunca lhe perdoou o facto de ele se ter enforcado na cozinha, no dia do meu primeiro aniversário.
Mas deixa-me explicar-te a genealogia. É muito simples até, mas, não sei porquê (e, de momento, nem quero tentar saber porquê), enredámo-nos todos numa teia enganosa porque se trocaram nomes (e até pessoas…mas já lá chegaremos…).
O meu pai era, de facto, sobrinho da tia Júlia. Foi por isso que a minha mãe sempre lhe chamou isso. E eu, de ouvir a minha mãe, chamava-lhe isso também.
O Jaime chamava-lhe avó Júlia porque ela fora casada com o senhor Augusto, verdadeiro avô dele, mas ela não fora mãe do pai do Jaime.
Ou seja, eu e o Jaime se calhar nem somos suficientemente chegados por laços de sangue para sequer nos chamarmos primos. Crescemos em casas diferentes, mas fomos criados como se fôssemos irmãos. Morávamos com duas ruas de premeio, mas acabávamos sempre por fazer uma pequena família, eu e a minha mãe, o Jaime e a avó dele. É que, a toda a volta, para onde quer que se olhasse nos ramos da árvore geneológica, só havia mortos. E desses, evitava falar-se. Principalmente do meu pai, porque a minha mãe nunca lhe perdoou o facto de ele se ter enforcado na cozinha, no dia do meu primeiro aniversário.
Colheita 2005
Fiz a minha selecção pessoal dos artistas e canções que marcaram o meu ano de 2005. (Nada como um novo tema de playlist para o iPod). Como de costume, isto das listas é sempre muito imperfeito. Não está tudo porque houve coisas que ainda não ouvi (Piano Magic, The white birch, etc..), ainda há uns restos de 2004 mas que só me chegaram aos ouvidos este ano e limitei-me a uma canção por grupo/artista (excepção aberta para os Dead Can Dance só porque sim). Conclusão: excelente ano de consumo musical.
Ambulance Ltd – “Heavy Lifting”
Andrew Bird – “Fake Palindromes”
Animal Collective – “Banshee Beat”
Annie – “Heartbeat (Royksopp Mix)”
Antony and the Johnsons – “Fistfull Of Love”
The Arcade Fire – “Rebellion (Lies)”
Billie Holiday – “Speak Low (Bent Remix)”
Bloc Party – “So here we are”
Cass McCombs – “Equinox”
Claudia Brucken – “Lipstick Vogue”
The Cloud room – “hey now now”
Dead Can Dance – “Saffron”
Dead Can Dance – “Hymn For The Fallen”
Depeche Mode – “Suffer Well”
Destroyer – “Notorious Lightning”
dEUS – “What We Talk About”
Devendra Banhart – “Cripple Crow”
Editors – “Munich”
Fiery Furnaces – “Here Comes The Summer”
Franz Ferdinand – “Come on home”
I Monster – “Heaven”
Interpol – “Public Pervert”
Kate Bush – “somewhere in between”
Khonnor – “phone calls from you”
Ladytron – “International Dateline”
LCD Soundsystem – “Tribulations”
Madeleine Peyroux – “Between The Bars”
Magnétophone – “...And May Your Last Words Be A Chance To Make Things Better”
Magnolia Electric Co. – “Hard to Love a Man”
Martha Wainwright – “The Car Song”
Mount Sims – “How We Do”
The National – “Abel”
Nine Horses – “The Banality Of Evil”
Nouvelle Vague – “Making Plans For Nigel”
Patrick Wolf – “The Libertine”
Plaza – “we came through”
Royksopp – “What Else Is There”
Rufus wainwright – “the art teacher”
Sigur Rós – “gong”
Stina Nordenstam – “From Cayman Islands with Love”
Sufjan Stevens – “Chicago”
The Veils – “The Leavers Dance”
VHS or Beta – “Night On Fire”
Em termos de concertos o ano também primou pela excelencia. Foram inesquecíveis:
Antony, Dead Can Dance, Rufus, Sigur Ros, The Young Gods
O momento alto de reciclagem foi a atinada encomenda via amazon.uk do CD do velhinho album
"Helleborine" dos Shelleyan Orphan
Ambulance Ltd – “Heavy Lifting”
Andrew Bird – “Fake Palindromes”
Animal Collective – “Banshee Beat”
Annie – “Heartbeat (Royksopp Mix)”
Antony and the Johnsons – “Fistfull Of Love”
The Arcade Fire – “Rebellion (Lies)”
Billie Holiday – “Speak Low (Bent Remix)”
Bloc Party – “So here we are”
Cass McCombs – “Equinox”
Claudia Brucken – “Lipstick Vogue”
The Cloud room – “hey now now”
Dead Can Dance – “Saffron”
Dead Can Dance – “Hymn For The Fallen”
Depeche Mode – “Suffer Well”
Destroyer – “Notorious Lightning”
dEUS – “What We Talk About”
Devendra Banhart – “Cripple Crow”
Editors – “Munich”
Fiery Furnaces – “Here Comes The Summer”
Franz Ferdinand – “Come on home”
I Monster – “Heaven”
Interpol – “Public Pervert”
Kate Bush – “somewhere in between”
Khonnor – “phone calls from you”
Ladytron – “International Dateline”
LCD Soundsystem – “Tribulations”
Madeleine Peyroux – “Between The Bars”
Magnétophone – “...And May Your Last Words Be A Chance To Make Things Better”
Magnolia Electric Co. – “Hard to Love a Man”
Martha Wainwright – “The Car Song”
Mount Sims – “How We Do”
The National – “Abel”
Nine Horses – “The Banality Of Evil”
Nouvelle Vague – “Making Plans For Nigel”
Patrick Wolf – “The Libertine”
Plaza – “we came through”
Royksopp – “What Else Is There”
Rufus wainwright – “the art teacher”
Sigur Rós – “gong”
Stina Nordenstam – “From Cayman Islands with Love”
Sufjan Stevens – “Chicago”
The Veils – “The Leavers Dance”
VHS or Beta – “Night On Fire”
Em termos de concertos o ano também primou pela excelencia. Foram inesquecíveis:
Antony, Dead Can Dance, Rufus, Sigur Ros, The Young Gods
O momento alto de reciclagem foi a atinada encomenda via amazon.uk do CD do velhinho album
"Helleborine" dos Shelleyan Orphan
quinta-feira, 24 de novembro de 2005
intermezzo da realidade
Para os que se interrogam, sim, resolvi começar a deixar aqui uma nova história que estou a escrever. Estão a ter acesso a ela praticamente em tempo real. Está a sair directamente do teclado para a janelita do "posting - create" e o meu "save" é o botãozito "publish post".
Porquê, perguntam os curiosos, os incautos e os óciosos?
Pela simples razão de que é um bom motivo para eu me forçar a escrever (quase) todos os dias.
Porquê, perguntam os curiosos, os incautos e os óciosos?
Pela simples razão de que é um bom motivo para eu me forçar a escrever (quase) todos os dias.
004 - Os Herdeiros
A minha relação com o Jaime foi, desde sempre, moldada pela tia Júlia. É claro que eu me apercebia disso, mas só nestas últimas semanas me apercebi do frio, calculado, propósito de tudo. E é isso que principalmente me tem perturbado, porque não creio ter compreendido ainda a verdadeira extensão daquilo que, receio, seja…
(espera, deixa-me tentar explicar outra coisa primeiro)
Esta manhã, no quiosque do aeroporto, enquanto olhava para os livros (velhos hábitos nunca se perdem, de resto como ia eu passar o tempo? A roer (ainda mais) as unhas?) assaltou-me uma recordação quando vi uma edição do Dom Quixote.
A forma como a tia Júlia nos fazia ler os clássicos era verdadeiramente insidiosa. Esse era um daqueles seus planos maquiavélicos de que, depois, ela própria se ria. Acontecia eu achar, casualmente, metido na minha mochila da escola entre os livros de Física e Matemática, as Fábulas de La Fontaine, ilustradas por Gustave Doré. E em vez de passar a tarde a fazer os trabalhos da escola, devorava aquelas histórias com animais sábios e tolos.
É claro que eu sabia que for a ela quem colocara o livro ali. Mas era um segredo. Só meu e dela. E depois, inevitavelmente, vinha um interrogatório. Subtil, mas impiedoso.
Estávamos a lanchar, e ela, cortando o queijo, diria:
“Diz o povo que comer muito queijo torna as pessoas esquecidas.”
E eu:
“Isso é verdade? “
“Não para os meninos bonitos. E tu és um menino bonito, não és, António?”
E eu ria-me.
“ Um corvo é que não sou de certeza, mas a tia é uma raposa! Das mais matreiras”
E riamo-nos os dois. E o Jaime ficava a olhar para nós a perguntar:
“O que foi? O que foi?”
“Explica-lhe lá…” diria ela, e eu passaria a tarde a contar as fábulas que lera ao Jaime, começando pela da raposa que elogiara a voz do corvo para que ele abrisse o bico e deixasse cair o queijo. Ela fica a ouvir-nos. Sorridente.
E , meses ou semanas depois, acharia eu, por acaso, na mesa da sala, uma cópia do Dom Quixote, ilustrado também por Gustave Doré, aberto na página em que Sancho Pança puxa o burro teimoso monte acima e olha desconsolado para Dom Quixote e Rocinante que cairam ridiculamente de pernas para o ar, derrotados pelos moinhos. Divertidíssimo, eu pegava no livro, lia umas quantas páginas, e tinha de o “roubar”. Punha-o na mochila e lia-o em casa, de uma assentada, ao longo de umas quantas noites. Foi assim que depois vieram “A Divina Comédia” e o “Paraíso Perdido”. Gustave Doré como perverso cúmplice da tia Júlia.
Mas o que me veio à memória no aeroporto foi uma conversa que tivémos anos depois, em que ela aproveitou para me tentar explicar uma coisa através do Dom Quixote. Tinhamos começado a falar de religião (que era assunto banal naquela casa) e depois de fé, e de crença, e no final a conversa descambou mais ou menos nisto, exemplo típico da lição de moral à la tia Júlia:
“António, as pessoas acreditam no que querem acreditar. Não podemos ridicularizar a fé de outras pessoas porque aquilo em que elas acreditam é a realidade para elas. A realidade é sempre uma construção mental do individuo. Lembras-te do Dom Quixote? Do episódio dos moinhos? Dom quixote e Sancho Pança passam por uns moinhos num monte e o Dom Quixote, convencido de que estes são gigantes, ataca-os e acaba espatifado e feito num oito, com o Sancho pança espantado com tanto ridículo.
Mas agora, imagina tu o oposto. Imagina que, de facto, os moinhos eram gigantes que, ao longe, Dom Quixote julga serem moinhos (a vista dele não devia decerto ser grande coisa) porque ele não acredita em gigantes. Seriam ambos certamente atacados pelos gigantes e Dom quixote, fraco como era, não conseguiria defender-se a si nem ao seu amigo. Dom Quixote talvez se safasse, porque, afinal de contas, tinha uma armadura, mas, os gigantes seriam certamente maus e impiedosos, pelo que nesta versão inversa, Sancho Pança não escaparia com vida e seria ele a jazer no chão, inevitavelmente morto.
Agora, o que achas preferível? Alguém submeter-se ao ridículo por acreditar em algo sobrenatural ou alguém ser incapaz de salvar um amigo da morte por não acreditar naquilo que tem em frente dos olhos?”
(espera, deixa-me tentar explicar outra coisa primeiro)
Esta manhã, no quiosque do aeroporto, enquanto olhava para os livros (velhos hábitos nunca se perdem, de resto como ia eu passar o tempo? A roer (ainda mais) as unhas?) assaltou-me uma recordação quando vi uma edição do Dom Quixote.
A forma como a tia Júlia nos fazia ler os clássicos era verdadeiramente insidiosa. Esse era um daqueles seus planos maquiavélicos de que, depois, ela própria se ria. Acontecia eu achar, casualmente, metido na minha mochila da escola entre os livros de Física e Matemática, as Fábulas de La Fontaine, ilustradas por Gustave Doré. E em vez de passar a tarde a fazer os trabalhos da escola, devorava aquelas histórias com animais sábios e tolos.
É claro que eu sabia que for a ela quem colocara o livro ali. Mas era um segredo. Só meu e dela. E depois, inevitavelmente, vinha um interrogatório. Subtil, mas impiedoso.
Estávamos a lanchar, e ela, cortando o queijo, diria:
“Diz o povo que comer muito queijo torna as pessoas esquecidas.”
E eu:
“Isso é verdade? “
“Não para os meninos bonitos. E tu és um menino bonito, não és, António?”
E eu ria-me.
“ Um corvo é que não sou de certeza, mas a tia é uma raposa! Das mais matreiras”
E riamo-nos os dois. E o Jaime ficava a olhar para nós a perguntar:
“O que foi? O que foi?”
“Explica-lhe lá…” diria ela, e eu passaria a tarde a contar as fábulas que lera ao Jaime, começando pela da raposa que elogiara a voz do corvo para que ele abrisse o bico e deixasse cair o queijo. Ela fica a ouvir-nos. Sorridente.
E , meses ou semanas depois, acharia eu, por acaso, na mesa da sala, uma cópia do Dom Quixote, ilustrado também por Gustave Doré, aberto na página em que Sancho Pança puxa o burro teimoso monte acima e olha desconsolado para Dom Quixote e Rocinante que cairam ridiculamente de pernas para o ar, derrotados pelos moinhos. Divertidíssimo, eu pegava no livro, lia umas quantas páginas, e tinha de o “roubar”. Punha-o na mochila e lia-o em casa, de uma assentada, ao longo de umas quantas noites. Foi assim que depois vieram “A Divina Comédia” e o “Paraíso Perdido”. Gustave Doré como perverso cúmplice da tia Júlia.
Mas o que me veio à memória no aeroporto foi uma conversa que tivémos anos depois, em que ela aproveitou para me tentar explicar uma coisa através do Dom Quixote. Tinhamos começado a falar de religião (que era assunto banal naquela casa) e depois de fé, e de crença, e no final a conversa descambou mais ou menos nisto, exemplo típico da lição de moral à la tia Júlia:
“António, as pessoas acreditam no que querem acreditar. Não podemos ridicularizar a fé de outras pessoas porque aquilo em que elas acreditam é a realidade para elas. A realidade é sempre uma construção mental do individuo. Lembras-te do Dom Quixote? Do episódio dos moinhos? Dom quixote e Sancho Pança passam por uns moinhos num monte e o Dom Quixote, convencido de que estes são gigantes, ataca-os e acaba espatifado e feito num oito, com o Sancho pança espantado com tanto ridículo.
Mas agora, imagina tu o oposto. Imagina que, de facto, os moinhos eram gigantes que, ao longe, Dom Quixote julga serem moinhos (a vista dele não devia decerto ser grande coisa) porque ele não acredita em gigantes. Seriam ambos certamente atacados pelos gigantes e Dom quixote, fraco como era, não conseguiria defender-se a si nem ao seu amigo. Dom Quixote talvez se safasse, porque, afinal de contas, tinha uma armadura, mas, os gigantes seriam certamente maus e impiedosos, pelo que nesta versão inversa, Sancho Pança não escaparia com vida e seria ele a jazer no chão, inevitavelmente morto.
Agora, o que achas preferível? Alguém submeter-se ao ridículo por acreditar em algo sobrenatural ou alguém ser incapaz de salvar um amigo da morte por não acreditar naquilo que tem em frente dos olhos?”
003 - Os Herdeiros
Salzburgo, Dezembro de 2005
Querida Joana:
Acho que esta vai ser a carta mais longa da minha vida. Afinal de contas tenho de te contar a minha vida, para que percebas. Pelo menos para que tenhas uma idéia melhor do que se está a passar. Eu também ainda não percebo bem. E, francamente, cada vez tenho mais medo de perceber…
Cheguei aqui esta manhã e, mal larguei as malas no hotel, saí à procura do Jaime. Tanto quanto sei, não está em nenhum hotel. Mas também só fui a alguns mesmo no centro. A propósito, Salzburgo é uma cidade estupidamente bonita mas, como calculas, não estou com uma disposição de turista. Se estivesse com o Jaime num dos nossos passeios, seríamos verdadeiramente as irmãs Schlegel, como as mamã nos chamava. A meter o nariz em todas as igrejas, museus e bibliotecas. A tomar cafés e chás nas esplanadas. A apreciar as vistas panorâmicas… Mas está frio, um frio de rachar, estou sozinho como a merda e Salzburgo começou a deprimir-me. Ou, para ser mais exacto, a deixar-me mais triste do que preocupado. O tempo estava carregado de nuvens logo quando aterrei e só tem ficado pior. À tarde começou a chover , mas à noite é bem capaz de nevar, com o frio que está. Voltei para o meu hotel e pedi as páginas amarelas na recepção. Passei metade da tarde a ligar para hotéis. Nada.
Enfim… depois desisti e tenho estado aqui às voltas, como um animal na jaula sem saber o que fazer.
Há bocado dei por mim a ter pena de não saber rezar. E depois enfureci-me comigo mesmo por estar a ser tão estúpido e a ter uma recaída cristã. Mas é o desespero, sabes… eu sei que sabes…
Espero que não estejas muito zangada comigo mas, como espero que venhas a perceber depois de leres isto, fiz o que o meu coração mandou. (É tão antiquado, falar assim. Tão novelista e vitoriano… que importãncia tem o meu coração no meio disto tudo?) Mas também sei que, se não tivesse seguido aquele impulso, teria ficado retido em Portugal. De certeza que não me deixavam sair do país.
Espero que a polícia não te esteja a dar muitos problemas. A minha mãe tentou telefonar-me mas eu não estou em condições de falar com ela. Mandei-lhe só um sms a dizer que estou bem, que está tudo bem.
Não está nada bem. Há semanas que nada está bem. Desde que a tia Júlia morreu que tudo se tem estado a desmoronar.
A minha mãe vai-te ajudar, vais ver. Ela tem um espírito prático. Verdadeiramente germânico.
Mas nada…nada, Joana, percebes? Nada me vai fazer deixar de sentir remorsos por te deixar assim, com a casa…não, com a vida, toda coberta de sangue, toda manchada de horror.
A única explicação que há para isso é o meu amor pelo Jaime. E é isso, principalmente, que eu te vou tentar explicar.
Querida Joana:
Acho que esta vai ser a carta mais longa da minha vida. Afinal de contas tenho de te contar a minha vida, para que percebas. Pelo menos para que tenhas uma idéia melhor do que se está a passar. Eu também ainda não percebo bem. E, francamente, cada vez tenho mais medo de perceber…
Cheguei aqui esta manhã e, mal larguei as malas no hotel, saí à procura do Jaime. Tanto quanto sei, não está em nenhum hotel. Mas também só fui a alguns mesmo no centro. A propósito, Salzburgo é uma cidade estupidamente bonita mas, como calculas, não estou com uma disposição de turista. Se estivesse com o Jaime num dos nossos passeios, seríamos verdadeiramente as irmãs Schlegel, como as mamã nos chamava. A meter o nariz em todas as igrejas, museus e bibliotecas. A tomar cafés e chás nas esplanadas. A apreciar as vistas panorâmicas… Mas está frio, um frio de rachar, estou sozinho como a merda e Salzburgo começou a deprimir-me. Ou, para ser mais exacto, a deixar-me mais triste do que preocupado. O tempo estava carregado de nuvens logo quando aterrei e só tem ficado pior. À tarde começou a chover , mas à noite é bem capaz de nevar, com o frio que está. Voltei para o meu hotel e pedi as páginas amarelas na recepção. Passei metade da tarde a ligar para hotéis. Nada.
Enfim… depois desisti e tenho estado aqui às voltas, como um animal na jaula sem saber o que fazer.
Há bocado dei por mim a ter pena de não saber rezar. E depois enfureci-me comigo mesmo por estar a ser tão estúpido e a ter uma recaída cristã. Mas é o desespero, sabes… eu sei que sabes…
Espero que não estejas muito zangada comigo mas, como espero que venhas a perceber depois de leres isto, fiz o que o meu coração mandou. (É tão antiquado, falar assim. Tão novelista e vitoriano… que importãncia tem o meu coração no meio disto tudo?) Mas também sei que, se não tivesse seguido aquele impulso, teria ficado retido em Portugal. De certeza que não me deixavam sair do país.
Espero que a polícia não te esteja a dar muitos problemas. A minha mãe tentou telefonar-me mas eu não estou em condições de falar com ela. Mandei-lhe só um sms a dizer que estou bem, que está tudo bem.
Não está nada bem. Há semanas que nada está bem. Desde que a tia Júlia morreu que tudo se tem estado a desmoronar.
A minha mãe vai-te ajudar, vais ver. Ela tem um espírito prático. Verdadeiramente germânico.
Mas nada…nada, Joana, percebes? Nada me vai fazer deixar de sentir remorsos por te deixar assim, com a casa…não, com a vida, toda coberta de sangue, toda manchada de horror.
A única explicação que há para isso é o meu amor pelo Jaime. E é isso, principalmente, que eu te vou tentar explicar.
quarta-feira, 23 de novembro de 2005
002 - Os Herdeiros
A minha mãe apareceu então e ralhou-me, perguntando-me porque era mau, porque não ficava quieto e dormia como um bom menino e porque fora para ali, o que estava ali a fazer. Ia-me fazendo todas estas perguntas, numa voz sussurrada mas zangada, irritada, enquanto me pegava ao colo e me levava de volta para a festa que, começava eu a perceber, era um velório (se bem que na altura eu lhe chamasse simplesmente funeral, incapaz de distinguir entre as diferentes socializações e burocracias da morte)
Eu achei que precisava de me desculpar e disse:
“Estava a conversar com aquele senhor.” e apontei para o fundo do corredor, para a porta que ela fechara cuidadosamente.
“Não sejas mentiroso!”
“Eu não sou mentiroso!”
“Então não digas disparates. Aquele senhor já não pode falar.”
“Ele falou comigo.”
“Ai, tanto disparate, vamos ter de pôr pimenta nessa língua.”
Isto alegrou-me um bocadito porque pimenta era uma coisa de adultos, que nunca me tinham deixado experimentar mesmo que eu pedisse. Mas não percebi a que propósito vinha isto.
Entrou na festa ainda comigo ao colo e riu-se para a tia Júlia, a avó do Jaime.
“Veja lá este tontinho. Entrou no quarto do Senhor Augusto e disse-me que estava a falar com ele.”
A tia Júlia não se riu. Olhou para mim muito séria e só então é que eu percebi que devia ter feito uma grande asneira.
“Vem cá”, disse ela, e estendeu os braços para que eu passasse do colo da minha mãe para o colo dela. E depois sentou-se logo, que eu já era pesado. Aliás, já começava a ser estranho que me pegassem assim. Há muito tempo que eu não pedia colo e já ninguém mo queria dar. Era difícil perceber se estavam mesmo zangadas comigo, com tanto mimo.
“Então, conta lá, que conversa era essa com o Augusto?”
Eu agora já percebia melhor o que se passava. Era o funeral do senhor Augusto, o avô do Jaime. Eu só o vira uma vez. Era o senhor que ficava sentado num cadeirão, no quarto escuro. A razão porque nunca se podia fazer barulho nos fundos da casa. O motivo porque se tinha de fazer silêncio a certas horas do dia. Não era uma pessoa de quem eu gostasse muito.
Compreendi que era ele quem estava deitado na cama, com os sapatos brilhantes, mesmo que não lhe tivesse visto a cara. E por isso disse:
“Não era com ele que eu estava a falar, era com o outro senhor.”
“Então, o que é isso? Agora pões-te a inventar histórias? O que é que te deu? Estás mesmo a querer levar uma palmada nesse rabiosque!” A minha mãe estava mesmo zangada comigo. Eu tentei começar a chorar, mas não estava lá muito triste por isso só devo ter conseguido fazer uma cara ridícula. A tia Júlia olhava para mim e riu-se um bocadinho.
“E quem era esse senhor, diz lá à tia.”
“Não sei.”
“Como é que ele era?”
“Tinha uma camisa preta.”
“Cabelos brancos?”
“Sim.”
“Um fio de ouro, com uma cruz, por cima da camisa?
Esta pergunta era mais complicada. Fechei os olhos e tentei lembrar-me. Deve ter sido isso, juntamente com todo este interrogatório que impediu que me esquecesse do homem, mesmo tendo passado tanto tempo sem que a memória voltasse a trazer à tona o episódio que só agora, vinte anos depois, faz tanto sentido, explica tanto.
“Sim, o senhor tinha um colar.”
A tia Júlia sorriu um pouco. Voltou-se para a minha mãe.
“Deixa o miúdo, Marta, ele não está a mentir.”
“Mas tia, não estava lá mais ninguém!”
A tia Júlia voltou-se para mim e começou a pentear-me com a mão, que era coisa que me irritava que os adultos fizessem. Mas achei melhor ficar quieto. Eu estava nas boas graças dela e era melhor aproveitar.
“Estava sim, Marta. Mas tu não o podias ver.”
A minha mãe não disse nada. Ficou só a olhar para mim. Eu achei que já devia estar tudo bem por isso disse:
“Posso comer bolo?”
A tia Júlia fazia imensos bolos, fosse qual fosse a ocasião. Estava um em cima da mesa e eu tinha estado o tempo inteiro a olhar para ele.
Eu achei que precisava de me desculpar e disse:
“Estava a conversar com aquele senhor.” e apontei para o fundo do corredor, para a porta que ela fechara cuidadosamente.
“Não sejas mentiroso!”
“Eu não sou mentiroso!”
“Então não digas disparates. Aquele senhor já não pode falar.”
“Ele falou comigo.”
“Ai, tanto disparate, vamos ter de pôr pimenta nessa língua.”
Isto alegrou-me um bocadito porque pimenta era uma coisa de adultos, que nunca me tinham deixado experimentar mesmo que eu pedisse. Mas não percebi a que propósito vinha isto.
Entrou na festa ainda comigo ao colo e riu-se para a tia Júlia, a avó do Jaime.
“Veja lá este tontinho. Entrou no quarto do Senhor Augusto e disse-me que estava a falar com ele.”
A tia Júlia não se riu. Olhou para mim muito séria e só então é que eu percebi que devia ter feito uma grande asneira.
“Vem cá”, disse ela, e estendeu os braços para que eu passasse do colo da minha mãe para o colo dela. E depois sentou-se logo, que eu já era pesado. Aliás, já começava a ser estranho que me pegassem assim. Há muito tempo que eu não pedia colo e já ninguém mo queria dar. Era difícil perceber se estavam mesmo zangadas comigo, com tanto mimo.
“Então, conta lá, que conversa era essa com o Augusto?”
Eu agora já percebia melhor o que se passava. Era o funeral do senhor Augusto, o avô do Jaime. Eu só o vira uma vez. Era o senhor que ficava sentado num cadeirão, no quarto escuro. A razão porque nunca se podia fazer barulho nos fundos da casa. O motivo porque se tinha de fazer silêncio a certas horas do dia. Não era uma pessoa de quem eu gostasse muito.
Compreendi que era ele quem estava deitado na cama, com os sapatos brilhantes, mesmo que não lhe tivesse visto a cara. E por isso disse:
“Não era com ele que eu estava a falar, era com o outro senhor.”
“Então, o que é isso? Agora pões-te a inventar histórias? O que é que te deu? Estás mesmo a querer levar uma palmada nesse rabiosque!” A minha mãe estava mesmo zangada comigo. Eu tentei começar a chorar, mas não estava lá muito triste por isso só devo ter conseguido fazer uma cara ridícula. A tia Júlia olhava para mim e riu-se um bocadinho.
“E quem era esse senhor, diz lá à tia.”
“Não sei.”
“Como é que ele era?”
“Tinha uma camisa preta.”
“Cabelos brancos?”
“Sim.”
“Um fio de ouro, com uma cruz, por cima da camisa?
Esta pergunta era mais complicada. Fechei os olhos e tentei lembrar-me. Deve ter sido isso, juntamente com todo este interrogatório que impediu que me esquecesse do homem, mesmo tendo passado tanto tempo sem que a memória voltasse a trazer à tona o episódio que só agora, vinte anos depois, faz tanto sentido, explica tanto.
“Sim, o senhor tinha um colar.”
A tia Júlia sorriu um pouco. Voltou-se para a minha mãe.
“Deixa o miúdo, Marta, ele não está a mentir.”
“Mas tia, não estava lá mais ninguém!”
A tia Júlia voltou-se para mim e começou a pentear-me com a mão, que era coisa que me irritava que os adultos fizessem. Mas achei melhor ficar quieto. Eu estava nas boas graças dela e era melhor aproveitar.
“Estava sim, Marta. Mas tu não o podias ver.”
A minha mãe não disse nada. Ficou só a olhar para mim. Eu achei que já devia estar tudo bem por isso disse:
“Posso comer bolo?”
A tia Júlia fazia imensos bolos, fosse qual fosse a ocasião. Estava um em cima da mesa e eu tinha estado o tempo inteiro a olhar para ele.
terça-feira, 22 de novembro de 2005
001 - Os Herdeiros
Isto é o que tenho de começar por te contar. Aconteceu teria eu 5 ou 6 anos. Aconteceu por causa do sangue. Eu tinha sangrado, sabes, por ter batido com a cara numa cadeira. Eu e o Jaime andávamos sempre a correr. E havia uma festa. Eu julguei que era uma festa. Tinhamos vindo a casa do Jaime porque havia uma festa. Foi a explicação que achei para tanta gente em casa deles. Era uma festa de adultos. Mesmo que estivessem todos de negro e não houvesse música.
Eu e o Jaime brincávamos, que os adultos pouco nos interessavam. E, na correria, eu bati numa cadeira e comecei a sangrar do nariz. Sei que fiquei coberto de sangue e lembro-me de chorar, não por estar a sangrar, mas por ter medo que me batessem por me ter sujado.
Levaram-me da sala, limparam-me, assoaram-me tirando o sangue, o ranho e as lágrimas. E depois tentaram deitar-me no quarto do Jaime. Eu fingi dormir para que me deixassem sozinho. E quando fiquei em paz levantei-me para ver os brinquedos do Jaime. Ele tinha um comboio. E carrinhos.
E quando me cansei disso abri a porta do quarto e olhei para o corredor. Estava escuro, e era demasiado comprido, todo portas. Eu ouvia o ruido da festa, as vozes dos adultos, mas ninguém podia saber que eu estava acordado. Experimentei as outras portas. A casa de banho. Um armário. E depois um quarto.
Neste nunca tinha entrado. Pela porta entreaberta espreitei lá para dentro. Estava escuro. Na cama estava deitado um homem vestido e calçado. Fato preto, sapatos engraxados e de negro brilhante. E ao lado dele sentava-se outro, na beira da cama. Estava também vestido de negro, mas apenas de calças e camisa. Camisa negra. Foi isso que eu achei estranho. As camisas eram sempre brancas. Ele olhou para mim. E sorriu. Eu disse:
- Ele está morto.
Não foi uma pergunta. Apenas disse o que percebera nesse momento, que o homem deitado estava morto.
O homem da camisa preta assentiu. E depois disse-me qualquer coisa. E durante vinte anos não me lembrei do que ele me dissera.
Eu e o Jaime brincávamos, que os adultos pouco nos interessavam. E, na correria, eu bati numa cadeira e comecei a sangrar do nariz. Sei que fiquei coberto de sangue e lembro-me de chorar, não por estar a sangrar, mas por ter medo que me batessem por me ter sujado.
Levaram-me da sala, limparam-me, assoaram-me tirando o sangue, o ranho e as lágrimas. E depois tentaram deitar-me no quarto do Jaime. Eu fingi dormir para que me deixassem sozinho. E quando fiquei em paz levantei-me para ver os brinquedos do Jaime. Ele tinha um comboio. E carrinhos.
E quando me cansei disso abri a porta do quarto e olhei para o corredor. Estava escuro, e era demasiado comprido, todo portas. Eu ouvia o ruido da festa, as vozes dos adultos, mas ninguém podia saber que eu estava acordado. Experimentei as outras portas. A casa de banho. Um armário. E depois um quarto.
Neste nunca tinha entrado. Pela porta entreaberta espreitei lá para dentro. Estava escuro. Na cama estava deitado um homem vestido e calçado. Fato preto, sapatos engraxados e de negro brilhante. E ao lado dele sentava-se outro, na beira da cama. Estava também vestido de negro, mas apenas de calças e camisa. Camisa negra. Foi isso que eu achei estranho. As camisas eram sempre brancas. Ele olhou para mim. E sorriu. Eu disse:
- Ele está morto.
Não foi uma pergunta. Apenas disse o que percebera nesse momento, que o homem deitado estava morto.
O homem da camisa preta assentiu. E depois disse-me qualquer coisa. E durante vinte anos não me lembrei do que ele me dissera.
segunda-feira, 21 de novembro de 2005
...(this must be underwater love)...
Cobri-me de lama e deitei-me
no leito do rio,
esperando por ti.
O coração uma pedra, tremendo de frio,
resistindo à corrente,
âncoramor.
no leito do rio,
esperando por ti.
O coração uma pedra, tremendo de frio,
resistindo à corrente,
âncoramor.
sexta-feira, 18 de novembro de 2005
o hinberno
Estou doente há mais de uma semana. Ainda não percebi se é gripe ou constipação, mas uma dessas será. E apesar de me sentir mal à brava há um prazerzito secreto em ter uma desculpa para me enterrar na cama e simular a hibernação.
Quero férias na cama com um bom livro!!! É para isso que serve o inverno, o frio e o mau tempo!!
A chatice é a minha consciência, que me obriga a trabalhar mesmo nos dias em que tenho ficado em casa. Como é que o mundo funcionava antes dos computadores portáteis e da internet??
Quero férias na cama com um bom livro!!! É para isso que serve o inverno, o frio e o mau tempo!!
A chatice é a minha consciência, que me obriga a trabalhar mesmo nos dias em que tenho ficado em casa. Como é que o mundo funcionava antes dos computadores portáteis e da internet??
quarta-feira, 16 de novembro de 2005
truques de luz
Em frente à janela do meu escritório há um prédio banalíssimo, mas esta tarde o sol está a bater numa das varandas e, por momentos, a luz reflectiu-se de lá para cá e fez-me levantar os olhos do écran do computador. Assenti, tal como os ramos do jacarandá, a meio da rua, concordando com a beleza.
Noites selvagens
Um amigo meu foi assaltado e agredido ontem à noite quando saiu sozinho de um bar gay em Zagreb, na Croácia. Ao que parece há por lá um gang que habitualmente espera que alguém saia sozinho desse bar para exercer um pouco de violência, coisa que o meu amigo turista desconhecia e alguém se esqueceu de o avisar...
Há cerca de um mês, outro turista, conhecido de um amigo meu aqui em Lisboa, foi para os copos no bar Portas Largas. O que se passou depois de lá ter entrado é um branco total. Alguém lhe pôs qualquer coisa na bebida e ele acordou no dia seguinte no quarto do seu hotel, mas tinham-lhe roubado tudo. Voltou ao bar para perguntar se se lembravam de o ter visto por lá e ficou a saber que não era o primeiro a quem tal acontecia...
Há cerca de um mês, outro turista, conhecido de um amigo meu aqui em Lisboa, foi para os copos no bar Portas Largas. O que se passou depois de lá ter entrado é um branco total. Alguém lhe pôs qualquer coisa na bebida e ele acordou no dia seguinte no quarto do seu hotel, mas tinham-lhe roubado tudo. Voltou ao bar para perguntar se se lembravam de o ter visto por lá e ficou a saber que não era o primeiro a quem tal acontecia...
terça-feira, 15 de novembro de 2005
aberraçoes modernas
Uma das maravilhas da tecnologia é pôr na mão do mais comum dos mortais os meios com que concretizar os seus caprichos artísticos. Este fim de semana, graças ao Garageband, criei um "maravilhoso" momento musical a partir de um poema de T.S. Eliot recitado pelo mesmo e uma música pirosérrima de Azis (a superstar (agora cometa) búlgara). A técnica do corta e cola permite estas pequenas aberrações que surpreendem. De alguma maneira isto faz sentido e soa bem. Infelizmente, devido á lei dos direitos de autor, não posso partilhar a coisa sem ser submetido a alguns processos judiciais. ...mas nada me impede de dar a ouvir aos amigos, assim como assim, esses já sabem que às vezes sou dado a estes desvarios...
a espera de Fevereiro
Os criadores do fenomenal jogo de Playstation "Ico" andam há mais de cinco anos à volta de "Shadow of the colossus".
É suposto ser lançado em Fevereiro de 2006 e há quase um ano que rodam trailers pela net que fazem os fãs de "Ico" salivar profusamente. Dizem os críticos sortudos que já meteram a mão na demo que é o mais próximo de uma experiência mística que se pode ter com uma playstation. Eu fui ver o novo site do jogo (http://www.shadowofthecolossus.com/) e também estou todo húmido... ò pessoal, despachem-se lá com isso!!!
quarta-feira, 9 de novembro de 2005
Momentos de grande televisao
De facto, cada vez mais a televisão é um sitio onde passam alguns programas no intervalo dos anuncios. Por ser anormalmente desprovido de tvCabo, a minha glamourosa Bang & Olufsen só apanha os 4 canaizitos da ordem e todos com chuva. Assim sendo, televisão é uma coisa que vejo por alguns minutos, antes de ligar a playstation.
Ontem, calhou-me ver um anuncio no segundo canal: Um gajo podre de bom em cuecas amarelas atravessa um apartamento modernaço e, sem ligar peva a uma miúda com o cio que se espoja num sofa, vai à varanda, coça o rabo (em grande plano), coça os frontais e cospe para o chão.
Isto sim é grande televisão! Fiquei tão atordoado com o gajo podre de bom e o grande plano das suas nádegas dentro de cuecas amarelas que levei uns bons minutos até perceber que era um anuncio anti-tabaco (uma nobre causa). Pensando bem, o anuncio não faz sentido nenhum e é a coisa mais estúpida que vi nos ultimos tempos. A frase pay-off era tão ridícula que nem me lembro dela. Mas estarei eu preocupado com isso?... O anuncio funciona perfeitamente em mim porque me cola ao écrán e podem ter a certeza que não será aos 32 anos que começarei a fumar. Viva a publicidade institucional do segundo canal!!!
PS_ depois de breve pequisa na net: os videos da campanha (afinal são 3!) estão disponíveis aqui:
http://cardiologia.browser.pt/PrimeiraPagina.aspx?ID_Conteudo=127
terça-feira, 8 de novembro de 2005
Monumentos
Ando obcecado com comida. Uma das minhas alegrias mais recentes foi descobrir umas bolachinhas de água e sal a que a fábrica junta azeite, azeitonas e oregãos. São tão boas que quase apetece escrever uma carta de agradecimento a quem inventou tal receita. Coisas destas podem começar cultos, religiões, impérios, civilizações. Mereciam pelo menos um monumento.
É que se se fazem monumentos para lembrar pessoas deviamos lembrar-nos também da comida que faz a nossa cultura. No Alentejo, por exemplo, bem se podiam fazer uns monumentos ao queijo (em Nisa), ao vinho (em Borba), aos coentros, etc.... Em Belém, já era altura de se erguer algo em louvor ao Pastel de Nata ali no meio dos navegadores e dos vice-reis da ìndia!
Nisto há alturas em que percebo perfeitamente os americanos. Se eu consigo manter uma cintura minimamente apresentável é por felizmente viver num país livre de donuts:
É que se se fazem monumentos para lembrar pessoas deviamos lembrar-nos também da comida que faz a nossa cultura. No Alentejo, por exemplo, bem se podiam fazer uns monumentos ao queijo (em Nisa), ao vinho (em Borba), aos coentros, etc.... Em Belém, já era altura de se erguer algo em louvor ao Pastel de Nata ali no meio dos navegadores e dos vice-reis da ìndia!
Nisto há alturas em que percebo perfeitamente os americanos. Se eu consigo manter uma cintura minimamente apresentável é por felizmente viver num país livre de donuts:
Muda-se o ser, muda-se a confiança
Ontem à noite, lá em casa, estivemos a ver os documentários "making of" da série "Nip/tuck". Para além de ter ficado espantado com a lucidez dos actores, realizador e escritores (não admira que a série seja boa) alguém referiu a certo ponto que os Estados Unidos são um país obcecado com a mudança pessoal e que, sendo tão difícil fazer mudanças no interior, se passou a tentar compensar isso com mudanças corporais, seja simplesmente através de exercício físico ou, mais radicalmente, com cirurgias plásticas.
Isto lembrou-me um comentário que tinha lido há pouco tempo num forum sobre livros em que alguém dizia que os livros que lhe agradavam eram os livros em que as personagens mudavam, alteravam o seu comportamento (sempre para "melhor", refira-se).
E de facto, olhando para uma grande maioria da ficção que consumo, que vem também na sua maior parte do mundo anglófilo, há sempre essa convicção marcada de que as pessoas podem mudar, admitir os seus erros e seguir redimidas pelo caminho do amor, da moral ou da justiça.
É bom acreditar nisso. Até eu gosto de acreditar nisso. Mas a minha visão cínica do mundo leva sempre a melhor. Eu não acho que as pessoas de facto mudem. Acho que há apenas uma adaptação às circunstâncias que é feita sempre com o propósito egoísta de melhorar a sua própria vida (conseguindo mais amor, mais moral e mais justiça).
Neste ponto de vista, olhando para os meus dois livros publicados, percebo perfeitamente porque é que o seu sucesso é tão diferente:
_ No romance para adultos ninguém muda. As personagens são cobardes, fogem à vida porque isso implicaria tomar iniciativa e provocar mudanças internas de personalidade e de valor moral. Escolhem sempre a alternativa fácil. E mesmo que no final não pareça ser assim, o final feliz graças à mudança é uma mera ilusão.
_O livro infantil é, no fundo, exclusivamente sobre mudança, sobre construção de identidade, alteração de comportamentos que trazem harmonia ao mundo. É (literalmente) uma visão arco-íris da humanidade. É aquilo em que queremos acreditar quando ainda somos crianças.
Tendo isto em conta, percebo perfeitamente porque é que o livro infantil, em 4 meses, vendeu quase o dobro do que livro para adultos em 2 anos...
E eu, que balanço pessoal é este entre criança e adulto, cinismo e esperança? ...Até agora, vai bastante equilibrado, julgo eu...
Isto lembrou-me um comentário que tinha lido há pouco tempo num forum sobre livros em que alguém dizia que os livros que lhe agradavam eram os livros em que as personagens mudavam, alteravam o seu comportamento (sempre para "melhor", refira-se).
E de facto, olhando para uma grande maioria da ficção que consumo, que vem também na sua maior parte do mundo anglófilo, há sempre essa convicção marcada de que as pessoas podem mudar, admitir os seus erros e seguir redimidas pelo caminho do amor, da moral ou da justiça.
É bom acreditar nisso. Até eu gosto de acreditar nisso. Mas a minha visão cínica do mundo leva sempre a melhor. Eu não acho que as pessoas de facto mudem. Acho que há apenas uma adaptação às circunstâncias que é feita sempre com o propósito egoísta de melhorar a sua própria vida (conseguindo mais amor, mais moral e mais justiça).
Neste ponto de vista, olhando para os meus dois livros publicados, percebo perfeitamente porque é que o seu sucesso é tão diferente:
_ No romance para adultos ninguém muda. As personagens são cobardes, fogem à vida porque isso implicaria tomar iniciativa e provocar mudanças internas de personalidade e de valor moral. Escolhem sempre a alternativa fácil. E mesmo que no final não pareça ser assim, o final feliz graças à mudança é uma mera ilusão.
_O livro infantil é, no fundo, exclusivamente sobre mudança, sobre construção de identidade, alteração de comportamentos que trazem harmonia ao mundo. É (literalmente) uma visão arco-íris da humanidade. É aquilo em que queremos acreditar quando ainda somos crianças.
Tendo isto em conta, percebo perfeitamente porque é que o livro infantil, em 4 meses, vendeu quase o dobro do que livro para adultos em 2 anos...
E eu, que balanço pessoal é este entre criança e adulto, cinismo e esperança? ...Até agora, vai bastante equilibrado, julgo eu...
segunda-feira, 7 de novembro de 2005
o novo saramago
E de repente, passa-se numa livraria e lá está um livro novo do Saramago. Onde é que ando para estas coisas me apanharem de surpresa?!
O mais surpreendente foi o livro ter um bonequito na capa e ser fininho (ou pelo menos metade da espessura habitual).
Comecei por ficar intrigado com a a traça/borboleta da capa, com a a caveirinha à lá "Silêncio dos Inocentes". Será o primeiro thriller do nosso nobel? Depois li as primeiras páginas e fiquei com a impressão de que já tinha lido aquele livro. É Saramago igual a si mesmo. Há quem diga que todos os escritores escrevem sempre o mesmo livro... melhor assim, acho que vou ler este para matar saudades. Há uns 7 anos que não leio o senhor e fiquei cheio de inveja do meu namorado o mês passado quando ele leu a "História do cerco de Lisboa" pela primeira vez...
É que não há como a primeira vez...
O mais surpreendente foi o livro ter um bonequito na capa e ser fininho (ou pelo menos metade da espessura habitual).
Comecei por ficar intrigado com a a traça/borboleta da capa, com a a caveirinha à lá "Silêncio dos Inocentes". Será o primeiro thriller do nosso nobel? Depois li as primeiras páginas e fiquei com a impressão de que já tinha lido aquele livro. É Saramago igual a si mesmo. Há quem diga que todos os escritores escrevem sempre o mesmo livro... melhor assim, acho que vou ler este para matar saudades. Há uns 7 anos que não leio o senhor e fiquei cheio de inveja do meu namorado o mês passado quando ele leu a "História do cerco de Lisboa" pela primeira vez...
É que não há como a primeira vez...
A musica dos deuses
Ontem de manhã, num zapping ocasional apanhei a transmissão da missa em Fátima, a tempo de ver a Maria Bethania e a Joanna a cantarem em louvor da Virgem Maria.
Nunca deixa de me espantar a má qualidade da música que a nossa contemporâniedade reserva para exaltar as divindades. Ponho-me sempre a pensar como seria viver no tempo de Bach, em que a música não estava presente no quotidiano como está hoje (não se ouvia nos supermercados, nos taxis, nos elevadores,no barbeiro, etc...) Passavam-se os dias com sonoridades estéreis e depois, ao domingo, na igreja, Bach fornecia aos seus paroquianos um bocadito de paraíso e transcendência através da música. Seria overdose? haveria desmaios? Não sei... a única certeza é que, até hoje, o génio daquele humano (e de outros) pode ser entendido como uma prova da existência de Deus.
Mas o que aconteceu à música religiosa? Como é que se transformou num cliché estéril e insonso? Sinceramente, acho que foi o medo do êxtase.
Ontem à noite fui ao concerto dos Young Gods. É certo que o som estava demasiado alto e bastaram os Bizarra Locomotiva na primeira parte para ficar logo com os timpanos fodidos, mas, ainda assim, foi um grande concerto. A minha devoção a estes três músicos suiços passa precisamente pelo êxtase que a musica deles provoca em mim. É uma experiência divina. As catadupas de som com que bombardeiam os corpos de uma plateia convulsionada por pulos e dança fazem com que o individuo saia de si mesmo. E por momentos beijamos mesmo o sol. E ardemos. E estamo-nos nas tintas para que nos estejam a foder os tímpanos porque o que importa mesmo é o orgasmo. A entrega total a algo maior do que nós.
E é precisamente porque todo o êxtase tem um conotação sexual que o catolicismo castrou a música. E a arte em geral, convenhamos (que Bernini hoje se atreveria a fazer uma Santa Teresa daquelas?). Ou seja, tirou a chama ao génio humano, logo, escondeu a face de Deus.
PS: parabéns aos jovens deuses pelo seu aniversário. Que contem muitos (mesmo tendo em conta a imortalidade dos deuses)
Nunca deixa de me espantar a má qualidade da música que a nossa contemporâniedade reserva para exaltar as divindades. Ponho-me sempre a pensar como seria viver no tempo de Bach, em que a música não estava presente no quotidiano como está hoje (não se ouvia nos supermercados, nos taxis, nos elevadores,no barbeiro, etc...) Passavam-se os dias com sonoridades estéreis e depois, ao domingo, na igreja, Bach fornecia aos seus paroquianos um bocadito de paraíso e transcendência através da música. Seria overdose? haveria desmaios? Não sei... a única certeza é que, até hoje, o génio daquele humano (e de outros) pode ser entendido como uma prova da existência de Deus.
Mas o que aconteceu à música religiosa? Como é que se transformou num cliché estéril e insonso? Sinceramente, acho que foi o medo do êxtase.
Ontem à noite fui ao concerto dos Young Gods. É certo que o som estava demasiado alto e bastaram os Bizarra Locomotiva na primeira parte para ficar logo com os timpanos fodidos, mas, ainda assim, foi um grande concerto. A minha devoção a estes três músicos suiços passa precisamente pelo êxtase que a musica deles provoca em mim. É uma experiência divina. As catadupas de som com que bombardeiam os corpos de uma plateia convulsionada por pulos e dança fazem com que o individuo saia de si mesmo. E por momentos beijamos mesmo o sol. E ardemos. E estamo-nos nas tintas para que nos estejam a foder os tímpanos porque o que importa mesmo é o orgasmo. A entrega total a algo maior do que nós.
E é precisamente porque todo o êxtase tem um conotação sexual que o catolicismo castrou a música. E a arte em geral, convenhamos (que Bernini hoje se atreveria a fazer uma Santa Teresa daquelas?). Ou seja, tirou a chama ao génio humano, logo, escondeu a face de Deus.
PS: parabéns aos jovens deuses pelo seu aniversário. Que contem muitos (mesmo tendo em conta a imortalidade dos deuses)
quinta-feira, 3 de novembro de 2005
Je suis snob
Na eterna busca da playlist perfeita, adicionei ontem ao meu iPod "je suis snob" cantado pelo Boris Vian (esse mesmo!). Prestando atenção à letra facilmente concluí que sou mais de 50% snob — o que é optimo porque assim me posso identificar com algo tão viciantemente cantarolável! Só é pena eu não conseguir cantar com aquele inimitável e delicioso ar de perfeito enfado...
Carne assada
Os sinos das igrejas de Lisboa tocaram no dia 1 de Novembro pelas vítimas do terramoto de 1755. A missa das 6 encheu (a minha vizinha queixava-se ao marido que já só tinha encontrado lugar num banco lateral atrás duma coluna). Mas aposto que ninguém rezou pelas vítimas do auto-de-fé que a Inquisição fez logo de seguida, aproveitando a oportunidade para assar uns sodomitas, umas bruxas e uns judeus. Disso já ninguém (convenientemente) se lembra.
Nos nosso tempos modernos e civilizados, em que se desculpa os procedimentos da Inquisição e da Igreja Católica com o peso da história, pode parecer uma coisa bárbara, sacrificar humanos para apaziguar a ira divina. Mas a verdade é que ainda hoje os bodes expiatórios são os mesmos, a diferença é que não se assam na praça pública. Experimentem procurar no google por "blame homosexuals hurricane New Orleans": dá qualquer coisa como 268.000 resultados!
Escapa-me verdadeiramente à compreensão como é que alguém é capaz de acreditar num deus que, por se irritar com a intimidade sexual de uma minoria, mata e chateia a grande maioria. Ou deveremos acreditar que todas as vítimas de catástrofes naturais são sodomitas? E que os autos-de-fé eram uma maneira de ajudar deus no seu trabalho mal acabado?
Nos nosso tempos modernos e civilizados, em que se desculpa os procedimentos da Inquisição e da Igreja Católica com o peso da história, pode parecer uma coisa bárbara, sacrificar humanos para apaziguar a ira divina. Mas a verdade é que ainda hoje os bodes expiatórios são os mesmos, a diferença é que não se assam na praça pública. Experimentem procurar no google por "blame homosexuals hurricane New Orleans": dá qualquer coisa como 268.000 resultados!
Escapa-me verdadeiramente à compreensão como é que alguém é capaz de acreditar num deus que, por se irritar com a intimidade sexual de uma minoria, mata e chateia a grande maioria. Ou deveremos acreditar que todas as vítimas de catástrofes naturais são sodomitas? E que os autos-de-fé eram uma maneira de ajudar deus no seu trabalho mal acabado?
terça-feira, 1 de novembro de 2005
Querido Antony
Foi bom passar mais uma noite na tua companhia. E é bom saber que há pessoas como tu no mundo capazes de redimir a humanidade. Thank youooouooou, thank yooououuuu...
no alentejo
Este fim de semana fomos visitar uma amiga minha que comprou uma casa alentejana, daquelas com paredes de terra caiada, quintal com rafeiro, gatos, galinhas e patos e um poço onde já se suicidaram duas pessoas. Não podia ser mais típico.
Há muito que não me aproximava tanto da ruralidade e é sempre bom fazer destas visitas para ficar sem dúvidas de que, por muito que goste do campo, eu sou um rato da cidade.
Há muito que não me aproximava tanto da ruralidade e é sempre bom fazer destas visitas para ficar sem dúvidas de que, por muito que goste do campo, eu sou um rato da cidade.
segunda-feira, 31 de outubro de 2005
Editora procura-se!
É oficial: não será a editora que publicou o "olhos de cão" a publicar o meu livro de contos. Isto quer dizer que neste momento o meu livro novo está solteiro, orfão e à espera de dono.
É um livro de contos alternados com imagens. O tema balança entre o amor e o sexo, entre o sentimental e o erótico. São 152 páginas de formato 15x16cm já paginadas por designer competente (eu!) e tem capa feita. É um livro para se ler, ver e pegar com as mãos.
Envia-se a editores competentes que gostem de ler e editar livros.
Contactar:
danieljskramesto@yahoo.com
É um livro de contos alternados com imagens. O tema balança entre o amor e o sexo, entre o sentimental e o erótico. São 152 páginas de formato 15x16cm já paginadas por designer competente (eu!) e tem capa feita. É um livro para se ler, ver e pegar com as mãos.
Envia-se a editores competentes que gostem de ler e editar livros.
Contactar:
danieljskramesto@yahoo.com
quarta-feira, 26 de outubro de 2005
nipa-me, tucka-me
Eu achava que depois de ter trabalhado para os enfermeiros do Grupo de Tratamento de Feridas Infectadas e ter paginado o livro de cirurgia plástica do doutor Francisco Campos já não havia imagens capazes de me fazer silvar, semicerrar os olhos e crispar os dedos dos pés. Até ontem à noite.
Comprámos os DVDs da série Nip/Tuck e vimos o primeiro episódio. Foi divertidíssimo. Dois homens adultos no sofá agarrados a almofadas, a tapar os olhos com as mãos e a guinchar que nem duas meninas. Isto na nossa sala. No écran, cirurgias descaradamente filmadas, sangue a rodos, muitas seringas a entrar na pele e, nojo dos nojos, um lipo-aspirador descontrolado a espirrar gordurita fresca numa sala de operação. Desde o filme "Re-animator" que não via algo tão gore. Adorámos!!
Além disso, os actores (ver foto), história e diálogos estão num bom nível.
Pena é o estômago não aguentar mais de um episódio por noite.
E sim, eu também snifaria esse tipo... ;-D
Comprámos os DVDs da série Nip/Tuck e vimos o primeiro episódio. Foi divertidíssimo. Dois homens adultos no sofá agarrados a almofadas, a tapar os olhos com as mãos e a guinchar que nem duas meninas. Isto na nossa sala. No écran, cirurgias descaradamente filmadas, sangue a rodos, muitas seringas a entrar na pele e, nojo dos nojos, um lipo-aspirador descontrolado a espirrar gordurita fresca numa sala de operação. Desde o filme "Re-animator" que não via algo tão gore. Adorámos!!
Além disso, os actores (ver foto), história e diálogos estão num bom nível.
Pena é o estômago não aguentar mais de um episódio por noite.
E sim, eu também snifaria esse tipo... ;-D
terça-feira, 25 de outubro de 2005
Ser quem nao sou
Às vezes ainda se encontram idiotas que julgam que ser homosexual é querer ser mulher. A principio não se percebe como é que alguém pode ser tão estúpido, mas depois, enfim, rebolam-se os olhos para trás do crâneo e a coisa passa... E quando alguém me faz a pergunta: "se fosses uma mulher quem gostarias de ser?" até consigo lembrar-me de três respostas:
Alaska
Roisin Murphy
Bette Midler
Será que tenho de explicar porquê?.... :-D
Alaska
Roisin Murphy
Bette Midler
Será que tenho de explicar porquê?.... :-D
Poesia Pop
"Hombres" - Fangoria
Hay hombres que se mueven,
hay hombres que se agitan,
hay hombres que no existen,
hay hombres que no gritan,
hay hombres que respiran,
hay hombres que se ahogan,
hay hombres que ocultan la verdad,
hay hombres que roban.
Hay quién apuesta fuerte y decide quererte,
sabiendo lo fácil que resulta perderte,
sabes que siempre estaré cerca de ti.
Hay hombres que te compran,
hay hombres que se venden,
hay hombres que recuerdan,
hay hombres que mienten,
hay hombres que prefieren no hablar,
hay hombres que no entienden.
Hay quién no tiene suerte y prefiere engañarte,
sabiendo lo fácil que resulta ganarte.
Sabes que nunca me iré lejos de ti.
Tienes que aprender a resistir, tienes que vivir,
esto no lo tengo
esto no lo hay,
esto no lo quiero
y esto que me das.
Hay quién apuesta fuerte y decide quererte,
sabiendo lo fácil que resulta perderte,
Sabes que siempre estaré cerca de ti.
Hay quién no tiene suerte y prefiere engañarte,
sabiendo lo fácil qué resulta ganarte.
Sabes que nunca me iré lejos de ti.
Hoy hay luna llena y un hombre camina por ella,
Hoy hay luna llena y un hombre camina por ella.
Hay hombres que se mueven,
hay hombres que se agitan,
hay hombres que no existen,
hay hombres que no gritan,
hay hombres que respiran,
hay hombres que se ahogan,
hay hombres que ocultan la verdad,
hay hombres que roban.
Hay quién apuesta fuerte y decide quererte,
sabiendo lo fácil que resulta perderte,
sabes que siempre estaré cerca de ti.
Hay hombres que te compran,
hay hombres que se venden,
hay hombres que recuerdan,
hay hombres que mienten,
hay hombres que prefieren no hablar,
hay hombres que no entienden.
Hay quién no tiene suerte y prefiere engañarte,
sabiendo lo fácil que resulta ganarte.
Sabes que nunca me iré lejos de ti.
Tienes que aprender a resistir, tienes que vivir,
esto no lo tengo
esto no lo hay,
esto no lo quiero
y esto que me das.
Hay quién apuesta fuerte y decide quererte,
sabiendo lo fácil que resulta perderte,
Sabes que siempre estaré cerca de ti.
Hay quién no tiene suerte y prefiere engañarte,
sabiendo lo fácil qué resulta ganarte.
Sabes que nunca me iré lejos de ti.
Hoy hay luna llena y un hombre camina por ella,
Hoy hay luna llena y un hombre camina por ella.
Os Duplex Longa
Na ida década de 80 houve um grupo português chamado Duplex Longa. Tinham um video giríssimo no PopOff para o tema "Forças Ocultas" que era feito simplesmente com uma câmara montada na frente de um carro a guiar pelas ruas de lisboa de dia e de noite, tudo filmado em velocidade acelerada.
Há coisa de um mês, graças a um amigo que tem praticamente todo o CD que merece ser ouvido, lá consegui fazer uma cópia do único album que eles fizeram. Como continua MP3zado no meu computador tem sido banda sonora de vários dias no emprego. A música é tão boa e ainda tão fresca que me custa e perceber porque é que isto não mereceu mais destaque na altura e porque é que nunca ninguém reeditou isto... e, o que é feito destes músicos?
Os Sigur Ros
Tenho uma relação algo dúbia com os Sigur Rós. A primeira vez que os ouvi foi através de um colega de emprego que punha aquilo a tocar para o povo. Não me desagradava de todo e até julgava que eram os Radiohead, mas irritava-me o rapaz e a sua atitude radiofónica pelo que nunca perguntei o que era aquilo.
Depois vi o filme "Anjos do Universo" e a música arrebatou-me completamente. Durante um ano ouvi-os bastante no recato do lar e chateei o pessoal da Zero até passarem o filme em Lisboa. Até que me comecei a aperceber do "culto" que lhes era dedicado. E eu não tenho paciencia para jovens sensíveis e depressivos que fazem disso um modo de vida...
Foi assim que os Sigur Rós saltaram para a prateleira das bandas cuja música me agrada mas cujos fãs não me permitem disfrutá-la em condições.
Este fim de semana comprei o disco novo (só porque tem uma embalagem simpática e eu sou um totó por coisas dessas) e fiquei surpreendido por ser melhor do que esperava. Por trás daqueles xilofones e guinchinhos à Mum, que eram um bocado dispensáveis, há um punhado de boas canções. A ver que tal me dou no concerto... eu ando tão pouco social...
Depois vi o filme "Anjos do Universo" e a música arrebatou-me completamente. Durante um ano ouvi-os bastante no recato do lar e chateei o pessoal da Zero até passarem o filme em Lisboa. Até que me comecei a aperceber do "culto" que lhes era dedicado. E eu não tenho paciencia para jovens sensíveis e depressivos que fazem disso um modo de vida...
Foi assim que os Sigur Rós saltaram para a prateleira das bandas cuja música me agrada mas cujos fãs não me permitem disfrutá-la em condições.
Este fim de semana comprei o disco novo (só porque tem uma embalagem simpática e eu sou um totó por coisas dessas) e fiquei surpreendido por ser melhor do que esperava. Por trás daqueles xilofones e guinchinhos à Mum, que eram um bocado dispensáveis, há um punhado de boas canções. A ver que tal me dou no concerto... eu ando tão pouco social...
sexta-feira, 21 de outubro de 2005
o pequeno almoço
O pequeno almoço lá em casa é a refeição mais importante do dia. Isto porque nos sentamos os dois à mesa, levamos algum tempo a comer (porque é preciso pôr o queijo no pão) e conseguimos ter uma conversa inteligente. Ou quase.
Moemos o café antes de o fazer, e, em dias bons, esprememos laranjas e fazemos torradas.
Hoje saí de casa a correr porque tinha uma reunião às 9h e, apesar de nos termos sentado, o pequeno almoço não correu como de costume. Não se consegue desabrochar para o dia sabendo que se tem de estar num sitio a uma hora inumana como as 9h.
Moral da história, estou algo desiquilibrado hoje. Faltou-me a âncora do dia.
Moemos o café antes de o fazer, e, em dias bons, esprememos laranjas e fazemos torradas.
Hoje saí de casa a correr porque tinha uma reunião às 9h e, apesar de nos termos sentado, o pequeno almoço não correu como de costume. Não se consegue desabrochar para o dia sabendo que se tem de estar num sitio a uma hora inumana como as 9h.
Moral da história, estou algo desiquilibrado hoje. Faltou-me a âncora do dia.
quinta-feira, 20 de outubro de 2005
misteriosa chama
Hoje, coincidindo com a minha leitura de "a misteriosa chama da rainha Loana" de Umberto Eco, tive um momento de intensa nostalgia. Acordei com o slogan "Spur sede, spur gosto, spur estilo, spur cola é Canada Dry!!" entranhado na cabeça e ainda não passou. Tive de ir procurar a imagem da garrafa para fins de exorcismo.
É curioso como me lembro perfeitamente da sensação tactil daqueles quadradinhos na base da garrafa...
Ainda as ferias
Ignorando os ocupadíssimos senhores em primeiro plano, eis a vista que se tem do Templo de Júpiter em Terracina, cidade onde passei uns dias felizes.
relatorio
O evento notável das férias foi o facto de eu ter finalmente dado por terminado o meu livro de contos. É certo que já seguiu para a editora ha 5 meses, mas, enquanto anda a ser ignorado por lá, entretive-me a polir-lhe as arestas. Textos revistos, imagens em arte final e paginação completa. Teoricamente poderia seguir para a gráfica amanhã.
- E porque é que não segue? - pergunta o leitor incauto.
- Ah, mas que boa pergunta.. - responde o autor, evasivo.
- E porque é que não segue? - pergunta o leitor incauto.
- Ah, mas que boa pergunta.. - responde o autor, evasivo.
prazeres do inverno
Ontem coloquei o edredon de inverno na cama. É um edredon de penas norueguês que mal se sente por cima de nós. Dormir nele é como abraçar algodão doce. Há imenso tempo que não dormia tão bem...
Ás vezes bastam estas pequenas coisas para nos preencher a vida.
Agora só falta neve lá fora!
Ás vezes bastam estas pequenas coisas para nos preencher a vida.
Agora só falta neve lá fora!
quarta-feira, 19 de outubro de 2005
De volta ao normal
É bom ir de férias como se por uma semana a nossa vida fosse outra.
Esteve-se bem em Itália. Boa comida, overdose cultural e descanso físico e psíquico.
Percebi finalmente que a toda a arte é cópia da cópia. Eu já sabia isso teoricamente, mas vendo as coisas com os próprios olhos assimilam-se os factos como deve ser.
Ao ver os mosaicos romanos de Pompeia (que já eram cópias de pinturas gregas) salta aos olhos que imensos séculos de arte europeia andaram apenas a melhorar técnicas para fazer a mesma coisa.
Mas, por outro lado, porque raio se há-de teimar em ver a História como um movimento evolutivo?
Enfim, visitar um dos berços da civilização deixou-me um pouco abalado. Um dia talvez consiga extrair alguma lógica do tumulto cerebral que isto me causou.
Quanto às trivialidades da vida, é sempre bom voltar para os excelentes multibancos portugueses e para o imaculado metro de lisboa. Mas foi bom comer o melhor mozzarela do mundo, gelados e salami... E ver as ruas de Nápoles cheias de napolitanos!
Esteve-se bem em Itália. Boa comida, overdose cultural e descanso físico e psíquico.
Percebi finalmente que a toda a arte é cópia da cópia. Eu já sabia isso teoricamente, mas vendo as coisas com os próprios olhos assimilam-se os factos como deve ser.
Ao ver os mosaicos romanos de Pompeia (que já eram cópias de pinturas gregas) salta aos olhos que imensos séculos de arte europeia andaram apenas a melhorar técnicas para fazer a mesma coisa.
Mas, por outro lado, porque raio se há-de teimar em ver a História como um movimento evolutivo?
Enfim, visitar um dos berços da civilização deixou-me um pouco abalado. Um dia talvez consiga extrair alguma lógica do tumulto cerebral que isto me causou.
Quanto às trivialidades da vida, é sempre bom voltar para os excelentes multibancos portugueses e para o imaculado metro de lisboa. Mas foi bom comer o melhor mozzarela do mundo, gelados e salami... E ver as ruas de Nápoles cheias de napolitanos!
sexta-feira, 7 de outubro de 2005
sempre o mesmo filme
É sabido! Basta eu anunciar que vou de férias para me assoberbarem de trabalho. Porque é que o trabalho só aparece dois dias antes de se ir de férias???
segunda-feira, 3 de outubro de 2005
eu e a cultura
Tenho de admitir que tenho grandes problemas com a cultura chamada "erudita" contemporânea. Principalmente com a música e as artes plásticas (ah, e o teatro e a dança também de vez em quando, mas como vou menos a esses não me afecta tanto).
Este fim de semana fui a um concerto que eu já sabia que iria ser de pling plóing irritante e incompreensível, mas como um amigo meu ia tocar, lá fui eu dar uma forcinha. As "obras musicais" apresentadas eram bastante recentes e iam dos anos 80 até uma estreia mundial, mas para mim soou-me tudo ao que estas coisas costumam soar: uma flauta que guincha, um piano martelado, um xilofone que se toca com um arco de violino, etc... silêncios incómodos seguidos de barulheira ao máximo e fuga total à menor expressão de frases melódicas ou padrões ritmicos. Curioso é como estas coisas são um cliché de si mesmo.
Sinceramente não vejo relevancia na existencia de coisas destas. Para mim, entre passar uma hora a ouvir um concerto destes ou passar uma hora à espera de uma consulta no dentista é um sacrificio quase igual. Tempo de vida desperdiçado à espera que o pior passe e se possa continuar a vida como ela é.
E quando me ponho a pensar no que o futuro recordará da música das últimas décadas (as da minha vida), não me parece que sejam estas obras desumanas de que, admitamos, ninguém, no seu perfeito juízo, pode gostar. Arte é comunicação, não alienação do espectador.
Este fim de semana fui a um concerto que eu já sabia que iria ser de pling plóing irritante e incompreensível, mas como um amigo meu ia tocar, lá fui eu dar uma forcinha. As "obras musicais" apresentadas eram bastante recentes e iam dos anos 80 até uma estreia mundial, mas para mim soou-me tudo ao que estas coisas costumam soar: uma flauta que guincha, um piano martelado, um xilofone que se toca com um arco de violino, etc... silêncios incómodos seguidos de barulheira ao máximo e fuga total à menor expressão de frases melódicas ou padrões ritmicos. Curioso é como estas coisas são um cliché de si mesmo.
Sinceramente não vejo relevancia na existencia de coisas destas. Para mim, entre passar uma hora a ouvir um concerto destes ou passar uma hora à espera de uma consulta no dentista é um sacrificio quase igual. Tempo de vida desperdiçado à espera que o pior passe e se possa continuar a vida como ela é.
E quando me ponho a pensar no que o futuro recordará da música das últimas décadas (as da minha vida), não me parece que sejam estas obras desumanas de que, admitamos, ninguém, no seu perfeito juízo, pode gostar. Arte é comunicação, não alienação do espectador.
sexta-feira, 30 de setembro de 2005
grotesco
Hoje, no meu trono de leitura (retrete) entretive-me a ler o guia TimeOut para Roma a fim de preparar a viagem da próxima semana. Assim se aprendeu que a palavra "grotesco" tem a seguinte origem:
Durante a renascença foi descoberto o antigo palácio de Nero e diversos artistas e pintores como Rafael desciam ao que pensavam ser cavernas ou grutas (grotto) para verem os frescos romanos. Inspirado, Rafael pinta um fresco no Vaticano com motivos clássicos pagãos que é apelidado de "grotesco".
É curioso pensar que Nero incendiou Roma, mandou as culpas para os cristãos, andou a chaciná-los no campo onde viria a ser contruído o Vaticano, local onde Rafael viria a pintar o seu fresco inspirado nos frescos da casa de Nero construida no sitio que ficou livre depois do incendio de Roma, fresco esse que iria influenciar toda a arte cristã feita a partir da Renascença.
Caramba, que isto tem piada!!!
Fresco da Domus Aurea, a casinha de Nero.
fresco de Rafael no vaticano
Durante a renascença foi descoberto o antigo palácio de Nero e diversos artistas e pintores como Rafael desciam ao que pensavam ser cavernas ou grutas (grotto) para verem os frescos romanos. Inspirado, Rafael pinta um fresco no Vaticano com motivos clássicos pagãos que é apelidado de "grotesco".
É curioso pensar que Nero incendiou Roma, mandou as culpas para os cristãos, andou a chaciná-los no campo onde viria a ser contruído o Vaticano, local onde Rafael viria a pintar o seu fresco inspirado nos frescos da casa de Nero construida no sitio que ficou livre depois do incendio de Roma, fresco esse que iria influenciar toda a arte cristã feita a partir da Renascença.
Caramba, que isto tem piada!!!
Fresco da Domus Aurea, a casinha de Nero.
fresco de Rafael no vaticano
quinta-feira, 29 de setembro de 2005
sim, senhor primeiro-ministro!
Agora é oficial! O governo norueguês vai mesmo avançar com a lei do casamento que dá direitos absolutamente iguais a casais homo e hetero. Quer dizer heranças, adopção, impostos, etc e tal...
A lei das uniões de facto gay já existia há alguns anos na Noruega mas agora é perfeita igualdade. E devo confessar que me dá vontade de ir com o meu namorado norueguês ali à embaixada da Noruega casar-me só para depois poder chatear toda a gente em Portugal: na repartição de finanças, nos bancos, no centro de saúde, na seguradora, etc. Isto porque em Portugal a nossa medíocre lei das uniões de facto não reconhece uma união entre um português e um estrangeiro!!
Esta lei aparece graças ao primeiro ministro Jens Stoltenberg
que, na sua juventude, já tinha feito o trabalho de bastidores para que a lei das uniões de facto fosse aprovada. Agora que é primeiro-ministro pela segunda vez resolveu terminar a coisa como deve ser.
Estava capaz de lhe dar um beijinho. Até porque, embora seja assustador achar um primeiro ministro sexy, ele até é!
A lei das uniões de facto gay já existia há alguns anos na Noruega mas agora é perfeita igualdade. E devo confessar que me dá vontade de ir com o meu namorado norueguês ali à embaixada da Noruega casar-me só para depois poder chatear toda a gente em Portugal: na repartição de finanças, nos bancos, no centro de saúde, na seguradora, etc. Isto porque em Portugal a nossa medíocre lei das uniões de facto não reconhece uma união entre um português e um estrangeiro!!
Esta lei aparece graças ao primeiro ministro Jens Stoltenberg
que, na sua juventude, já tinha feito o trabalho de bastidores para que a lei das uniões de facto fosse aprovada. Agora que é primeiro-ministro pela segunda vez resolveu terminar a coisa como deve ser.
Estava capaz de lhe dar um beijinho. Até porque, embora seja assustador achar um primeiro ministro sexy, ele até é!
quarta-feira, 28 de setembro de 2005
terça-feira, 27 de setembro de 2005
santa ignorancia
Tem sido difícil ignorar a campanha para as eleições autárquicas mas acho que estou a conseguir: só hoje é que reparei que vou de férias para fora do país no dia antes, o que quer dizer que, seja como for, não vou votar!
Suponho que irracionalmente eu já sabia que não valia a pena estar a prestar atenção a este circo...
Suponho que irracionalmente eu já sabia que não valia a pena estar a prestar atenção a este circo...
nos Açores
Acrescentei duas imagens novas ao meu site:
http://home.no.net/danielba/galeria
Esta tem lugar algures em São Miguel:
http://home.no.net/danielba/galeria
Esta tem lugar algures em São Miguel:
Destroyer - "your blues"
Foi editado o ano passado mas ouvi-o hoje pela primeira vez depois de aterrar que nem um OVNI na minha secretária. Estranhei à primeira mas entranhou-se logo à segunda. É o novo favorito da minha playlist e não sei nada sobre estes tais de Destroyer, mas que importa isso? Quem canta letras como "submarines don´t mind spending their time in the ocean" só pode ter génio pop nas veias. Já ganhei o dia e quase me esqueci da minha smog-burrice.
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