domingo, 14 de outubro de 2007

Ainda a Doris

Depois de vários dias a ler jornais e blogs de literatura é fácil concluir que quase ninguém em Portugal leu Doris Lessing e quem leu limitou-se aos seus primeiros livros, os tais que lhe valeram o carimbo de "feminista" ou o da "experiência de Africa" de que nunca mais se conseguiu safar. Os mais "esclarecidos" lembram-se de referir que "a autora também tem umas coisas de ficção científica".

Ora aqui está a melhor justificação para que se atribua um Prémio Nobel a alguém: fazer com que o autor seja lido.

Doris Lessing é uma autora que importa conhecer pelo seu pensamento lúcido e claro, pela sua visão global da humanidade, da sociedade e da importância politica do indivíduo.
Pessoalmente, agradam-me mais os seus ensaios e prefácios. A sua autobiografia é um marco incontornável na sua obra. E depois há os romances...
Os romances de Doris Lessing são ossos duros de roer. Não pela erudição linguística (bitola snobe de muita intelectuália), mas pelas temáticas. Pela ousadia com que se lança a mostrar-nos momentos e situações da condição humana a que preferiríamos voltar a cara.

Como por exemplo em "Diário de uma boa vizinha", em que uma jornalista de uma revista feminina resolve prestar ajuda a uma vizinha octagenária e acaba por ver a sua vida "perfeita" contaminada por escabrosa pobreza, injustiça social e a decadência do corpo pela doença e idade. É um dos livros mais dolorosos de se ler porque nos esfrega na cara as diferenças de classe e de idade e denuncia absurdos e injustiças sociais para os quais é difícil arranjar respostas e soluções.

Como por exemplo os relatórios em "Shikasta" em que nos são dados, em mini-contos, vários perfis de terroristas e de loucos. A enumeração lógica de causas e motivos que levam as pessoas a perder o contacto com a realidade e a ganhar ódio ao mundo.

Como por exemplo a exploração da inocência, do amor e da devoção para fins de ódio e destruição que a trama de "A boa terrorista" nos explica, numa sucessão de injustiças que, de tão verosímeis, nos cavam um buraco na alma.

Por enquanto, em Portugal podemos contar apenas com traduções de algumas das suas obras dos anos 70 e 80. Decerto que agora muito mais virá. Ainda bem. Mas, para quem ainda não contactou com esta escritora, basta ler o prefácio ao livro "O caderno dourado" para perceber a relevância deste Nobel.

E eu nem devia precisar de dizer que a série "Canopus em Argos" é uma obra de génio, peça incontronável da literatura da segunda metade do séc. XX. Infelizmente, é preciso dizê-lo. Ainda bem que a academia sueca também o diz.

Ok senhores do Nobel, agora posso esperar que se lembrem do Gene Wolfe?

1 comentário:

Anónimo disse...

Confesso que não a conhecia, e daquilo que ouvi nos últimos dias só me ficou a associação ao feminismo e à ficção científica. Mas segundo se diz aqui, parece que foi merecido e fará mais sentido do que, por exemplo, o Nobel da Paz, que ainda não consegui digerir...