quinta-feira, 24 de novembro de 2005

003 - Os Herdeiros

Salzburgo, Dezembro de 2005

Querida Joana:

Acho que esta vai ser a carta mais longa da minha vida. Afinal de contas tenho de te contar a minha vida, para que percebas. Pelo menos para que tenhas uma idéia melhor do que se está a passar. Eu também ainda não percebo bem. E, francamente, cada vez tenho mais medo de perceber…
Cheguei aqui esta manhã e, mal larguei as malas no hotel, saí à procura do Jaime. Tanto quanto sei, não está em nenhum hotel. Mas também só fui a alguns mesmo no centro. A propósito, Salzburgo é uma cidade estupidamente bonita mas, como calculas, não estou com uma disposição de turista. Se estivesse com o Jaime num dos nossos passeios, seríamos verdadeiramente as irmãs Schlegel, como as mamã nos chamava. A meter o nariz em todas as igrejas, museus e bibliotecas. A tomar cafés e chás nas esplanadas. A apreciar as vistas panorâmicas… Mas está frio, um frio de rachar, estou sozinho como a merda e Salzburgo começou a deprimir-me. Ou, para ser mais exacto, a deixar-me mais triste do que preocupado. O tempo estava carregado de nuvens logo quando aterrei e só tem ficado pior. À tarde começou a chover , mas à noite é bem capaz de nevar, com o frio que está. Voltei para o meu hotel e pedi as páginas amarelas na recepção. Passei metade da tarde a ligar para hotéis. Nada.
Enfim… depois desisti e tenho estado aqui às voltas, como um animal na jaula sem saber o que fazer.
Há bocado dei por mim a ter pena de não saber rezar. E depois enfureci-me comigo mesmo por estar a ser tão estúpido e a ter uma recaída cristã. Mas é o desespero, sabes… eu sei que sabes…
Espero que não estejas muito zangada comigo mas, como espero que venhas a perceber depois de leres isto, fiz o que o meu coração mandou. (É tão antiquado, falar assim. Tão novelista e vitoriano… que importãncia tem o meu coração no meio disto tudo?) Mas também sei que, se não tivesse seguido aquele impulso, teria ficado retido em Portugal. De certeza que não me deixavam sair do país.
Espero que a polícia não te esteja a dar muitos problemas. A minha mãe tentou telefonar-me mas eu não estou em condições de falar com ela. Mandei-lhe só um sms a dizer que estou bem, que está tudo bem.
Não está nada bem. Há semanas que nada está bem. Desde que a tia Júlia morreu que tudo se tem estado a desmoronar.
A minha mãe vai-te ajudar, vais ver. Ela tem um espírito prático. Verdadeiramente germânico.
Mas nada…nada, Joana, percebes? Nada me vai fazer deixar de sentir remorsos por te deixar assim, com a casa…não, com a vida, toda coberta de sangue, toda manchada de horror.
A única explicação que há para isso é o meu amor pelo Jaime. E é isso, principalmente, que eu te vou tentar explicar.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Passei metade da tarde a ligar para hotéis: nada." em vez de "Passei metade da tarde aligar para hotéis. Nada.".

"Mas nada ... nada, Joana, percebes?, nada me vai fazer deixar", em vez de "Mas nada ... nada, Joana, percebes? Nada me vai fazer deixar".

Zé Ribeiro
jribeiro@uevora.pt