terça-feira, 22 de novembro de 2005

001 - Os Herdeiros

Isto é o que tenho de começar por te contar. Aconteceu teria eu 5 ou 6 anos. Aconteceu por causa do sangue. Eu tinha sangrado, sabes, por ter batido com a cara numa cadeira. Eu e o Jaime andávamos sempre a correr. E havia uma festa. Eu julguei que era uma festa. Tinhamos vindo a casa do Jaime porque havia uma festa. Foi a explicação que achei para tanta gente em casa deles. Era uma festa de adultos. Mesmo que estivessem todos de negro e não houvesse música.
Eu e o Jaime brincávamos, que os adultos pouco nos interessavam. E, na correria, eu bati numa cadeira e comecei a sangrar do nariz. Sei que fiquei coberto de sangue e lembro-me de chorar, não por estar a sangrar, mas por ter medo que me batessem por me ter sujado.
Levaram-me da sala, limparam-me, assoaram-me tirando o sangue, o ranho e as lágrimas. E depois tentaram deitar-me no quarto do Jaime. Eu fingi dormir para que me deixassem sozinho. E quando fiquei em paz levantei-me para ver os brinquedos do Jaime. Ele tinha um comboio. E carrinhos.
E quando me cansei disso abri a porta do quarto e olhei para o corredor. Estava escuro, e era demasiado comprido, todo portas. Eu ouvia o ruido da festa, as vozes dos adultos, mas ninguém podia saber que eu estava acordado. Experimentei as outras portas. A casa de banho. Um armário. E depois um quarto.
Neste nunca tinha entrado. Pela porta entreaberta espreitei lá para dentro. Estava escuro. Na cama estava deitado um homem vestido e calçado. Fato preto, sapatos engraxados e de negro brilhante. E ao lado dele sentava-se outro, na beira da cama. Estava também vestido de negro, mas apenas de calças e camisa. Camisa negra. Foi isso que eu achei estranho. As camisas eram sempre brancas. Ele olhou para mim. E sorriu. Eu disse:
- Ele está morto.
Não foi uma pergunta. Apenas disse o que percebera nesse momento, que o homem deitado estava morto.
O homem da camisa preta assentiu. E depois disse-me qualquer coisa. E durante vinte anos não me lembrei do que ele me dissera.

9 comentários:

Anónimo disse...

A que se deve esta bonita, mas sombria, inflexão no tom dos teus posts — está tudo bem contigo? Abraço, Gonçalo

João M disse...

belo texto.

Daniel J. Skråmestø disse...

tudo bem, Gonçalito, é só ficção!!!

Bruno disse...

Espero que não seja só ficção! Basta de banalidades!!!

Venus as a boy disse...

E desde quando a produção ficcional é obrigatoriamente uma produção banal?!

Daniel J. Skråmestø disse...

Bruno, a ficção alimenta-se quase sempre de banalidades do real. Esta história do fantasma sentado na cama veio de facto da boca da minha amiga Maria João. Ela contou-me a história da avó dela que, ao espreitar para o quarto onde o marido estava morto, viu, sentado num cadeirão aos pés da cama, um homem vestido de negro que, mais tarde, ao querer saber quem era, concluiu que ninguém o conhecia e ninguém para além dela o tinha visto.
Eu é que sou um ladrão de histórias alheias... mas que hei-de fazer? A banalidade fascina-me.

Bruno disse...

Quando me refiro a banalidades, refiro-me, por exemplo, à recente tomada de posição papal. Escolho, escolherei sempre, histórias escritas por ti a "histórias" vindas do real, mesmo quando tu recolhes e escolhes no real a matéria para a ficção!
Gosto mesmo muito de ti!

Bruno disse...

...e a produção ficcional nem sempre é produção banal, assim como a banalidade nem sempre é ficção.

Anónimo disse...

"Tínhamos vindo a casa do Jaime", em vez de "Tinhamos vindo a casa do Jaime".

"Eu ouvia o ruído da festa", em vez de "Eu ouvia o ruido da festa".

Zé Ribeiro
jribeiro@uevora.pt