quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

029 - Os Herdeiros

Montámos o acampamento já noite escura, eu e o Jaime tão atrapalhados com as lanternas e a tenda que eles tiveram de nos ajudar a pô-la de pé. Sentámo-nos a jantar à volta da fogueira, primeiro aturando as cançõezitas de escuteiro tocadas na guitarra que um dos rapazes carregara montanha acima, montanha abaixo, e depois começámos a contar anedotas e histórias.
A certa altura o João Paulo fez questão de nos explicar mais sobre Sintra começando pelo nome, que, ao que parece, significa montanha da lua e deriva da palavra Cyntia, de origem celta, que se refere à deusa grega Artémis, a virgem caçadora.
Aí o Jaime interrompeu-o:
“É estranho esse nome. Sin é o deus árabe da lua. Bem, não exactamente árabe, mas era esse o nome que os assírios usavam. A lua era um deus masculino para os povos da mesopotâmia. Claro que depois passou a ser referido como Alá, mas o simbolo da lua ficou. Quanto tempo é que os árabes estiveram aqui em Sintra? Dois, três séculos?”
“E tu falas árabe, se calhar…”, gozou um dos outros rapazes.
“Um bocadinho, estou a aprender.”
“De qualquer maneira isso soa-me a disparate”, disse o João Paulo. “Em todas as culturas a lua deve ser um astro feminino porque tem uma relação com o período das mulheres”.
“Não, disse eu. Em norueguês, por exemplo, “lua” é uma palavra masculina e o “sol” é feminino. É curioso porque também só dei por isso outro dia. Estava a ver um livro com pinturas de Munch e reparei num quadro que era referido como uma cena nocturna isso mas não estava a fazer muito sentido porque eu olhava para ele e via o sol, representado como um enorme…aa…falo, reflectido na água, e só conseguia ver aquilo como uma coisa masculina. Mas depois, claro, ocorreu-me que a lua é masculina em norueguês e que assim já fazia todo o sentido representá-la daquela maneira.”
Ninguém falou ou quis acrescentar algo a isto.
“O António está a aprender norueguês.”, esclareceu o Padre Matos, mas ninguém deixou de olhar para nós como se fossemos anormais.
Eu conhecia aquela atmosfera. Era a mesma que ficava no ar cada vez que eu abria a boca nas aulas. Ficava sempre a sentir-me um mete-nojo.
“Já é tarde, acho que me vou deitar.”, disse eu.
“Sim, também já estou com sono.”, disse o Jaime.
Fomos para a tenda e entrámos nos sacos-cama sem trocar palavra. Deitados em silêncio, a marinar numa amargura habitual, ambos sabíamos o que o outro pensava: que nunca seríamos capazes de socializar como pessoas normais antes de fazermos uma lobotomia.
O Jaime abriu o lado do saco-cama e pôs a mão de fora. Eu fiz o mesmo e adormecemos de mãos dadas.

6 comentários:

/me disse...

De mãos dadas? Encostados, sempre podiam fingir que não era nada. :)

Daniel J. Skråmestø disse...

Um dia, quando adormeceres de mão dada com alguém vais-te arrepender de ser cínico.
- Isto é uma praga.

:-P

/me disse...

A minha mãe tinha sempre de me dar a mão, quando eu era pequenino, senão não adormecia...

De resto, já mais grandito, já dormi ao lado de quem amei. Sei como é bom... Quando acordava, a meio da noite, por não estar habituado a partilhar a cama, tinha de lhe tocar... Ele de manhã ralhava comigo, mas a distância física doía. :p

Pronto, pronto, já páro de partilhar. :)

Daniel J. Skråmestø disse...

Vês?! Bem feita, menino da mamã! Nada como pragas com efeitos retroactivos.

;-D

/me disse...

Ora... Vai ler runas!

(foi o melhor que me surgiu, assim à pressa)

:P

Daniel J. Skråmestø disse...

eheheh