sábado, 11 de fevereiro de 2006

031 - Os Herdeiros

“O que achas que devemos fazer?”
“Eu acho que vou buscar os nossos sacos-cama e deitar-me na tenda do padre Matos. Quando eles chegarem logo nos ajudam a arranjar aquilo. Caramba, está mesmo frio!”, disse o Jaime, esfregando os braços.
“Tu não achas que eles estão em perigo…”
“Não sejas parvo. São só escuteiros malucos. E mesmo que partam as pernas a andar por aí à noite eles sabem fazer talas com pauzinhos e pôr ervas nas feridas e coisas dessas. Só acho que foram muito mal educados em se ir embora sem nos dizer nada.”
“E se eles se perderam?”
“Nesse caso, bem feita. Mas o Sol deve estar a nascer não tarda nada. Ninguém se consegue perder aqui por muito tempo. Está tudo cheio de estradas! E nós não estamos própriamente acampados no meio do nada”, E apontou a lanterna para a mesa de piqueniques que ficava lá mais para o fundo da clareira e que não tinhamos usado ao jantar só para tentar fingir que estavamos mais longe da civilização. Suponho que também o fez só para se reconfortar um bocadinho, mas a mim, aquele relance do mundo real fez parecer tudo ainda mais desolado.
Entretanto o Jaime já levava as nossas coisas para a outra tenda. Eu fiquei ainda um pouco a olhar em volta, à espera de ver não sei o quê, mas depois enfiei-me rapidamente no saco-cama. A meu lado, o Jaime não tardou a adormecer mas eu não consegui pregar olho.
Deve ter passado quase uma hora até eu os ouvir. Pus a cabeça fora da tenda e, à luz pálida e leitosa da alvorada, vi-os a regressar, algo cambaleantes, ao acampamento.
O João Paulo riu-se ao ver a nossa tenda no chão. Os outros também sorriam ao olhar para a minha cabeça desgrenhada emergindo da tenda do padre Matos, mas ele tinha um ar zangado quando me perguntou o que acontecera. Expliquei-lhes o acidente sem entrar em pormenores embaraçosos.
“E vocês, onde foram?”
“Fomos só dar um passeio. Dá-me os nossos sacos-cama. Nós deitamo-nos na vossa tenda.”
“Porque é que levaram tanto tempo?”
“Porque o João Paulo é um idiota! Deixa lá isso, volta a dormir. Nós estamos exaustos.”
Passei-lhe os sacos-cama e voltei a fechar a tenda.
“Eles já voltaram?”, resmungou o Jaime sem sequer se virar ou abrir o olhos.
“Já. Acho que estiveram a beber.”
“É mais provável que tenham estado a fumar ganzas.”
“Achas que sim? Mas ele é padre!”
“Isso não quer dizer que seja um santo.”
“Se era por isso, não precisavam de se ir embora. A quem é que nós iamos contar?”
“Ao menino Jesus. Calas-te e deixas-me dormir?”
Voltei a deitar-me mas ainda não conseguia dormir. Enquanto o Jaime ressonava baixinho eu prestava atenção aos sons do que se passava lá fora. Era difícil perceber o que diziam, mas de vez em quando ouviam-se uns risinhos. A voz do padre Matos no entanto continuava a soar zangada. E num momento em que se ergueu com mais volume, tenho a certeza de que o ouvi dizer:
“Não podes hesitar com a faca. Foi por isso que ela conseguiu fugir.”

3 comentários:

/me disse...

A tragédia! O drama! O horror!
Isto começa tudo a atingir dimensões chocantes!

/me disse...

“Se era por isso, não precisavam de se ir embora. A quem é que nós iamos contar?”
“Ao menino Jesus. Calas-te e deixas-me dormir?”

Genial...

Venus as a boy disse...

;)