quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

030 - Os Herdeiros

Acordei a meio da noite com uma pressão familiarmente incómoda na bexiga. Tentei fingir que não era nada e adormecer de novo mas tive que me resignar, vestir uma camisola e abrir a tenda o mais silenciosamente que pude para não acordar o Jaime. Estava escuro e frio à brava. A única coisa que via eram os contornos indistintos das árvores abanadas pelo vento gelado. Enchi-me de coragem e, mesmo em peúgas, dei a volta à tenda, até onde calculava estar o tronco de uma árvore. Arrependi-me logo de não ter calçado os ténis porque as agulhas dos pinheiros e o cascalho aleijavam-me os pés. Foi por isso que não fui muito longe para mijar.
Ainda não tinha terminado por completo quando ouvi a voz do Jaime perguntar:
“Estás bem, António?”
E, subitamente, a luz da lanterna que ele acendeu e apontou na minha direcção, iluminou a raíz da árvore que eu escolhera como alvo. Aí contorcia-se uma cara, um esgar, qualquer coisa entre o réptil e o humano. Dei vários passos para trás e o gemido de terror só me saiu da garganta quando já estava a cair em cima da tenda.
O Jaime chamou-me todos os nomes que se lembrou ao ver-me enrolado no oleado e nas estacas da tenda, lutando para me libertar.
“O que é que estás a fazer, idiota?!”
“Estava a fazer xixi, mas acho que vi uma cobra quando acendeste a lanterna.”
Levantei-me e tirei-lhe a lanterna da mão. Avancei cuidadosamente apontando a luz para as raízes da árvore. A única coisa de anormal era a mancha escura que eu tinha deixado no chão. Era apenas uma raiz mais contorcida que o costume. Mas eu apostava que a tinha visto mexer-se. Mais do que isso, se eu fechasse os olhos conseguia ver ainda aquela cara horrenda a fitar-me.
“Deve ter sido um reflexo naquela raíz.”, disse o Jaime, pondo em palavras um dos meus pensamentos. “E, se era mesmo uma cobra, já fugiu quando lhe mijaste em cima.”
Não me consegui rir porque ainda tremia, abalado pelo susto, e ele, ao meu lado, tremia também, mas de frio, porque se tinha levantado só em t-shirt, cuecas e meias.
“Anda medricas, ajuda-me a levantar isto outra vez.”, disse ele já a bater os dentes.
Mas eu tinha feito tantos estragos que não conseguimos pôr a tenda de novo em pé. Era um emaranhado impossível de lona, estacas e cordas.
“Acho que temos de acordar alguém para nos ajudar.”, concluiu o Jaime. E eu, apesar da vergonha, concordei. Apontei a lanterna para as outras duas tendas e dirigi-me à mais pequena. Comecei por chamar o padre Matos, mas como o meu sussurro não parecia capaz de o acordar e eu não queria erguer mais a voz para não acordar os outros, acabei por abrir o fecho da tenda e olhar lá para dentro.
Estava vazia.
“O que foi?”, perguntou o Jaime ao ver-me paralizado, com o foco apontado lá para dentro.
“Não está aqui ninguém.”
“Se calhar estão todos a dormir na tenda grande, por causa do frio.”
Não fui capaz de argumentar que na tenda “grande” cabiam só três pessoas e que os sacos-cama estavam ali, bem estendidos e fechados, como se não tivessem sido usados. Assenti apenas com a cabeça e estendi a lanterna ao Jaime, que entretanto viera ver com os seus próprios olhos e se agachara ao meu lado. Ele levantou-se devagar mas avançou decidido para a outra tenda e bateu na lona como se fosse uma porta.
Nada.
Eu aproximei-me e olhámos um para o outro apreensivos antes de ele abrir o fecho.
Vazia. Os três sacos-cama estendidos e intocados como os outros dois.
“Acho que não se deitaram.”, disse eu. “Se calhar foram dar um passeio antes de dormir.”
O Jaime foi até aos restos da fogueira apagada e pôs a mão nas cinzas.
“Está fria.”
“Que horas são?” perguntei eu. E ele, surpreendido por eu interromper o seu momento Sherlock Holmes- índio com uma pergunta lógica, apontou o foco para o relógio no pulso.
“Quatro e meia.”
“A que horas nos deitámos?”
“Deviam ser dez ou onze. Não era tarde.”
Ficámos calados, sem querer expressar as idéias que nos corriam pela cabeça. Eu só conseguia pensar na cara na raiz da árvore, mas mesmo assim não fui capaz de contar ao Jaime o que verdadeiramente julgara ter visto. Era patético estar a pensar em vampiros, lobisomens ou simples assassinos psicópatas, mas, cortando afiado a noite escura, o vento açoitava tão impiedosamente as árvores e a lona da nossa tenda desfeita, mal pendurada nas estacas tortas, que eu comecei a tremer, já não tanto por causa do frio, mas por causa do medo que me começava a invadir o corpo e que eu não conseguia conter porque nunca o sentira assim tão puro, tão agudo, indomável, a cavalgar-me pelas veias.

1 comentário:

/me disse...

Ahh, ele tem mesmo de dizer "Estava a fazer xixi"??? Nao pode dizer que estava a mijar? A esvaziar a bexiga? Odeio quando alguém com mais de 8 anos diz que tem de fazer xixi.

(pronto, pronto, é um odiozinho pessoal, ignora)

Vá, agora faz-te homem e escreve mais, que estou a gostar de ler.