Acabei por adormecer, vencido pelo cansaço, para acordar já manhã avançada, sozinho na tenda e com a cabeça pesada e doída, martelada que fora por sonhos de um surrealismo descontrolado.
O Jaime e os outros tinham feito fogo e preparavam comida. Ninguém parecia de bom humor e, pensando aonde tinha de ir para me lavar com água gelada concluí que não era feito para acampar. Eu queria ir para casa, ler um livro, dormir numa cama fofa e lavar-me numa casa de banho. Que raio estava eu ali a fazer com gente de que nem sequer gostava e que me aturavam por favor à tia Júlia? As explicações que nos deram para o passeio nocturno também não me convenceram, era óbvio que estavam a mentir.Mas o que mais me irritou foi terem começado a tratar-nos como se fôssemos crianças. As conversas, que no dia anterior tinham sido ligeiras e cheias de incentivo para que apreciássemos “a caminhada e o saudável contacto com a natureza”, agora estavam todas infectadas por um sarcasmo escarninho sobre a nossa inabilidade para montar as tendas, fazer fogo e aguentar o passo em caminhos mais íngremes. De repente éramos um estorvo. Mais irritante ainda era o silêncio do Padre Matos que evitava até olhar para nós. Dei por mim a desejar que ele voltasse à sua boa disposição postiça, que sempre era um estado mais “normal”.
Felizmente, a meio da tarde, já nós nos tinhamos arrastado por intermináveis trilhos da floresta, quando ele apontou na direcção de uma estrada de alcatrão e disse:
“Então e se encurtássemos o passeio? Se formos por ali chegamos aos carros daqui a uma hora. Eu sei que tinhamos planeado acampar esta noite também, mas parece que estamos todos muito cansados.”
Todos encolhemos os ombros, com vergonha de expressar o alívio por alguém ter finalmente sugerido isso mas o Padre Matos não esperou por mais respostas e simplesmente seguiu na direcção que apontara. Em menos de duas horas estávamos de volta a Lisboa onde eles nos largaram frente à Sé.
Eu e o Jaime mal tínhamos falado durante o dia, sabendo que estávamos ambos de mau humor e irritadiços. Decidimos ir cada um para sua casa, eu aliviado por não ter de passar pelo interrogatório da tia Júlia. A minha mãe ia simplesmente ficar contente por eu ter voltado mais cedo. Mas nem tive de me preocupar com o que havia de dizer. Ela não estava em casa.
Aproveitei para dar um duche interminável com a água mais quente que o meu corpo aguentava. O telefone tocou quando eu ainda me limpava. Era o Jaime.
“Podes vir para cá?”
“Porquê?”
“A vó Júlia não está em casa.”
“A minha mãe também não. Deve ter ido ao cinema, os óculos dela não estão cá. Se calhar foram juntas. “. Mas enquanto falava percebi o disparate que estava a dizer. A tia Júlia nunca ia ao cinema.
“Sim, se calhar foi isso…” disse o Jaime, pouco convicto. “Mas podes vir?”
“Estou cansado. Ia-me deitar.”
O Jaime ficou calado.
“O que é que se passa?”
Ele hesitou.
“Vem para cá.”, disse depois de repente.
E, sem que fossem precisas mais palavras, eu percebi. Ele estava com medo.
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006
quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006
estrelinhas
Depois de alguns meses de trabalho árduo, dei finalmente uma classificação a todas as canções do meu iPod.
Estou portanto em condições de partilhar com o mundo o nome das que ganharam 5 estrelinhas. Os critérios para a sua atribuição são obviamente muito pessoais e subjectivos (atenção: há nomes de canções que não estão 100% correctos).
Estou portanto em condições de partilhar com o mundo o nome das que ganharam 5 estrelinhas. Os critérios para a sua atribuição são obviamente muito pessoais e subjectivos (atenção: há nomes de canções que não estão 100% correctos).
sábado, 11 de fevereiro de 2006
031 - Os Herdeiros
“O que achas que devemos fazer?”
“Eu acho que vou buscar os nossos sacos-cama e deitar-me na tenda do padre Matos. Quando eles chegarem logo nos ajudam a arranjar aquilo. Caramba, está mesmo frio!”, disse o Jaime, esfregando os braços.
“Tu não achas que eles estão em perigo…”
“Não sejas parvo. São só escuteiros malucos. E mesmo que partam as pernas a andar por aí à noite eles sabem fazer talas com pauzinhos e pôr ervas nas feridas e coisas dessas. Só acho que foram muito mal educados em se ir embora sem nos dizer nada.”
“E se eles se perderam?”
“Nesse caso, bem feita. Mas o Sol deve estar a nascer não tarda nada. Ninguém se consegue perder aqui por muito tempo. Está tudo cheio de estradas! E nós não estamos própriamente acampados no meio do nada”, E apontou a lanterna para a mesa de piqueniques que ficava lá mais para o fundo da clareira e que não tinhamos usado ao jantar só para tentar fingir que estavamos mais longe da civilização. Suponho que também o fez só para se reconfortar um bocadinho, mas a mim, aquele relance do mundo real fez parecer tudo ainda mais desolado.
Entretanto o Jaime já levava as nossas coisas para a outra tenda. Eu fiquei ainda um pouco a olhar em volta, à espera de ver não sei o quê, mas depois enfiei-me rapidamente no saco-cama. A meu lado, o Jaime não tardou a adormecer mas eu não consegui pregar olho.
Deve ter passado quase uma hora até eu os ouvir. Pus a cabeça fora da tenda e, à luz pálida e leitosa da alvorada, vi-os a regressar, algo cambaleantes, ao acampamento.
O João Paulo riu-se ao ver a nossa tenda no chão. Os outros também sorriam ao olhar para a minha cabeça desgrenhada emergindo da tenda do padre Matos, mas ele tinha um ar zangado quando me perguntou o que acontecera. Expliquei-lhes o acidente sem entrar em pormenores embaraçosos.
“E vocês, onde foram?”
“Fomos só dar um passeio. Dá-me os nossos sacos-cama. Nós deitamo-nos na vossa tenda.”
“Porque é que levaram tanto tempo?”
“Porque o João Paulo é um idiota! Deixa lá isso, volta a dormir. Nós estamos exaustos.”
Passei-lhe os sacos-cama e voltei a fechar a tenda.
“Eles já voltaram?”, resmungou o Jaime sem sequer se virar ou abrir o olhos.
“Já. Acho que estiveram a beber.”
“É mais provável que tenham estado a fumar ganzas.”
“Achas que sim? Mas ele é padre!”
“Isso não quer dizer que seja um santo.”
“Se era por isso, não precisavam de se ir embora. A quem é que nós iamos contar?”
“Ao menino Jesus. Calas-te e deixas-me dormir?”
Voltei a deitar-me mas ainda não conseguia dormir. Enquanto o Jaime ressonava baixinho eu prestava atenção aos sons do que se passava lá fora. Era difícil perceber o que diziam, mas de vez em quando ouviam-se uns risinhos. A voz do padre Matos no entanto continuava a soar zangada. E num momento em que se ergueu com mais volume, tenho a certeza de que o ouvi dizer:
“Não podes hesitar com a faca. Foi por isso que ela conseguiu fugir.”
“Eu acho que vou buscar os nossos sacos-cama e deitar-me na tenda do padre Matos. Quando eles chegarem logo nos ajudam a arranjar aquilo. Caramba, está mesmo frio!”, disse o Jaime, esfregando os braços.
“Tu não achas que eles estão em perigo…”
“Não sejas parvo. São só escuteiros malucos. E mesmo que partam as pernas a andar por aí à noite eles sabem fazer talas com pauzinhos e pôr ervas nas feridas e coisas dessas. Só acho que foram muito mal educados em se ir embora sem nos dizer nada.”
“E se eles se perderam?”
“Nesse caso, bem feita. Mas o Sol deve estar a nascer não tarda nada. Ninguém se consegue perder aqui por muito tempo. Está tudo cheio de estradas! E nós não estamos própriamente acampados no meio do nada”, E apontou a lanterna para a mesa de piqueniques que ficava lá mais para o fundo da clareira e que não tinhamos usado ao jantar só para tentar fingir que estavamos mais longe da civilização. Suponho que também o fez só para se reconfortar um bocadinho, mas a mim, aquele relance do mundo real fez parecer tudo ainda mais desolado.
Entretanto o Jaime já levava as nossas coisas para a outra tenda. Eu fiquei ainda um pouco a olhar em volta, à espera de ver não sei o quê, mas depois enfiei-me rapidamente no saco-cama. A meu lado, o Jaime não tardou a adormecer mas eu não consegui pregar olho.
Deve ter passado quase uma hora até eu os ouvir. Pus a cabeça fora da tenda e, à luz pálida e leitosa da alvorada, vi-os a regressar, algo cambaleantes, ao acampamento.
O João Paulo riu-se ao ver a nossa tenda no chão. Os outros também sorriam ao olhar para a minha cabeça desgrenhada emergindo da tenda do padre Matos, mas ele tinha um ar zangado quando me perguntou o que acontecera. Expliquei-lhes o acidente sem entrar em pormenores embaraçosos.
“E vocês, onde foram?”
“Fomos só dar um passeio. Dá-me os nossos sacos-cama. Nós deitamo-nos na vossa tenda.”
“Porque é que levaram tanto tempo?”
“Porque o João Paulo é um idiota! Deixa lá isso, volta a dormir. Nós estamos exaustos.”
Passei-lhe os sacos-cama e voltei a fechar a tenda.
“Eles já voltaram?”, resmungou o Jaime sem sequer se virar ou abrir o olhos.
“Já. Acho que estiveram a beber.”
“É mais provável que tenham estado a fumar ganzas.”
“Achas que sim? Mas ele é padre!”
“Isso não quer dizer que seja um santo.”
“Se era por isso, não precisavam de se ir embora. A quem é que nós iamos contar?”
“Ao menino Jesus. Calas-te e deixas-me dormir?”
Voltei a deitar-me mas ainda não conseguia dormir. Enquanto o Jaime ressonava baixinho eu prestava atenção aos sons do que se passava lá fora. Era difícil perceber o que diziam, mas de vez em quando ouviam-se uns risinhos. A voz do padre Matos no entanto continuava a soar zangada. E num momento em que se ergueu com mais volume, tenho a certeza de que o ouvi dizer:
“Não podes hesitar com a faca. Foi por isso que ela conseguiu fugir.”
sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006
o ano dos caubois
Os serões das ultimas semanas têm sido quase todos passados a ver episódios da série Deadwood que se recomenda vivamente. O argumento e diálogos são excelentes, os actores são excelentes, os cenários são excelentes, a fotografia é excelente, a realização é excelente... e a cada episódio sobem a fasquia.
Estou completamente fascinado.
Estou completamente fascinado.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006
lamechice
Ontem lá vi finalmente o "Brokeback mountain" e, como já esperava, chorei um bocadito e vou levar uns anos a recuperar da coisa (eu ainda não estava totalmente restablecido de "o paciente inglês").
Obrigado Hollywood, pela glossy love story passada dentro do armário (quase literalmente). Fazia falta. Mas daqui a uns anos experimentem fazer qualquer coisa verdadeiramente chocante: talvez uma história de amor gay com final feliz?
PS - como de costume, o livro é melhor do que o filme, mas este é daqueles que, embora completamente fiel ao livro, não deixa de ser puro cinema e vale por si mesmo. Veja o filme, leia o livro (que até é um conto pequenito) ou vice versa!
PS2 - será muito mau sonhar que o Heath Ledger ganha o óscar e pede o Jake Gyllenhaal em casamento no discurso? Eu quero um final feliz!!
Obrigado Hollywood, pela glossy love story passada dentro do armário (quase literalmente). Fazia falta. Mas daqui a uns anos experimentem fazer qualquer coisa verdadeiramente chocante: talvez uma história de amor gay com final feliz?
PS - como de costume, o livro é melhor do que o filme, mas este é daqueles que, embora completamente fiel ao livro, não deixa de ser puro cinema e vale por si mesmo. Veja o filme, leia o livro (que até é um conto pequenito) ou vice versa!
PS2 - será muito mau sonhar que o Heath Ledger ganha o óscar e pede o Jake Gyllenhaal em casamento no discurso? Eu quero um final feliz!!
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006
Cegueria Histerica
Ontem desencantei no clube de video um filme surpreendentemente bom.
"Cegueira histérica" com Juliette Lewis, Uma Thurman e Gena Rownlands.
A história é bocadito básica e não passa de uma espécie de retrato de mulheres americanas suburbanas à beira de um ataque de nervos, mas vale pelos desempenhos das actrizes (Uma thurman ganhou um globo de ouro com isto e Juliette Lewis merecia um também)
Tenho saudades de ver mais a Juliette.
Também ia muito bem no "Blueberry", que é outra pérola ignorada.
Eu amo a Juliette. (A Lewis... se bem que também não me desagrada La Binoche)
"Cegueira histérica" com Juliette Lewis, Uma Thurman e Gena Rownlands.
A história é bocadito básica e não passa de uma espécie de retrato de mulheres americanas suburbanas à beira de um ataque de nervos, mas vale pelos desempenhos das actrizes (Uma thurman ganhou um globo de ouro com isto e Juliette Lewis merecia um também)
Tenho saudades de ver mais a Juliette.
Também ia muito bem no "Blueberry", que é outra pérola ignorada.
Eu amo a Juliette. (A Lewis... se bem que também não me desagrada La Binoche)
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006
morte aos noruegueses
Nunca deixo de me espantar com o efeito bola de neve que a estupidez pode ter. Ou que há gente estúpida que provoca estupidez em gente ainda mais estúpida e assim sucessivamente, ao estilo das bonequinhas russas que saltam umas de dentro das outras.
Isto a propósito de uma polémica que tem feito correr tinta nos media noruegueses e que se resume da seguinte maneira:
1- Um jornal dinamarquês resolve fazer uma reportagem onde apresenta algumas caricaturas da cara de Maomé, o profeta da fé islâmica. - Para os menos sabedores que não percebem porque é que isto é insultuoso, informa-se que a religião muçulmana é iconoclasta, ou seja, não permite representações de profetas, de deus, etc... (o que na minha opinião até é uma coisa muito saudável, tendo em conta muitas ilustrações cristãs que se vêm por aí)
2- Organizações muçulmanas chateiam-se, com razão, e, sem razão, há ameaças de bomba na sede do jornal dinamarquês
3- Uma revista cristã norueguesa publica um dos retratos de maomé, apelando à liberdade de expressão (confundido liberdade de expressão com liberdade de ofender o próximo)
4- Um dos maiores jornais diários noruegueses não publica a cara do profeta, mas publica fotos das outras publicações que a publicaram (ou seja, a hipocrisia do "nós não mostramos, mas vejam os outros a mostrar")
5 - Os muçulmanos noruegueses chateiam-se
6 - Uma bloguista norueguesa "famosa" e "inteligente" resolve começar uma acção entre bloggers de modo a que haja todos os dias um blog norueguês a publicar a cara do maomé. A Acção ganha direito a primeiras páginas nos jornais.
7 - Muçulmanos de várias partes do globo chateiam-se com os noruegueses e ameaçam de morte qualquer norueguês que ponha o pé no seu país.
Moral da história: Esta gente toda devia arranjar mais que fazer.
Isto a propósito de uma polémica que tem feito correr tinta nos media noruegueses e que se resume da seguinte maneira:
1- Um jornal dinamarquês resolve fazer uma reportagem onde apresenta algumas caricaturas da cara de Maomé, o profeta da fé islâmica. - Para os menos sabedores que não percebem porque é que isto é insultuoso, informa-se que a religião muçulmana é iconoclasta, ou seja, não permite representações de profetas, de deus, etc... (o que na minha opinião até é uma coisa muito saudável, tendo em conta muitas ilustrações cristãs que se vêm por aí)
2- Organizações muçulmanas chateiam-se, com razão, e, sem razão, há ameaças de bomba na sede do jornal dinamarquês
3- Uma revista cristã norueguesa publica um dos retratos de maomé, apelando à liberdade de expressão (confundido liberdade de expressão com liberdade de ofender o próximo)
4- Um dos maiores jornais diários noruegueses não publica a cara do profeta, mas publica fotos das outras publicações que a publicaram (ou seja, a hipocrisia do "nós não mostramos, mas vejam os outros a mostrar")
5 - Os muçulmanos noruegueses chateiam-se
6 - Uma bloguista norueguesa "famosa" e "inteligente" resolve começar uma acção entre bloggers de modo a que haja todos os dias um blog norueguês a publicar a cara do maomé. A Acção ganha direito a primeiras páginas nos jornais.
7 - Muçulmanos de várias partes do globo chateiam-se com os noruegueses e ameaçam de morte qualquer norueguês que ponha o pé no seu país.
Moral da história: Esta gente toda devia arranjar mais que fazer.
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006
030 - Os Herdeiros
Acordei a meio da noite com uma pressão familiarmente incómoda na bexiga. Tentei fingir que não era nada e adormecer de novo mas tive que me resignar, vestir uma camisola e abrir a tenda o mais silenciosamente que pude para não acordar o Jaime. Estava escuro e frio à brava. A única coisa que via eram os contornos indistintos das árvores abanadas pelo vento gelado. Enchi-me de coragem e, mesmo em peúgas, dei a volta à tenda, até onde calculava estar o tronco de uma árvore. Arrependi-me logo de não ter calçado os ténis porque as agulhas dos pinheiros e o cascalho aleijavam-me os pés. Foi por isso que não fui muito longe para mijar.
Ainda não tinha terminado por completo quando ouvi a voz do Jaime perguntar:
“Estás bem, António?”
E, subitamente, a luz da lanterna que ele acendeu e apontou na minha direcção, iluminou a raíz da árvore que eu escolhera como alvo. Aí contorcia-se uma cara, um esgar, qualquer coisa entre o réptil e o humano. Dei vários passos para trás e o gemido de terror só me saiu da garganta quando já estava a cair em cima da tenda.
O Jaime chamou-me todos os nomes que se lembrou ao ver-me enrolado no oleado e nas estacas da tenda, lutando para me libertar.
“O que é que estás a fazer, idiota?!”
“Estava a fazer xixi, mas acho que vi uma cobra quando acendeste a lanterna.”
Levantei-me e tirei-lhe a lanterna da mão. Avancei cuidadosamente apontando a luz para as raízes da árvore. A única coisa de anormal era a mancha escura que eu tinha deixado no chão. Era apenas uma raiz mais contorcida que o costume. Mas eu apostava que a tinha visto mexer-se. Mais do que isso, se eu fechasse os olhos conseguia ver ainda aquela cara horrenda a fitar-me.
“Deve ter sido um reflexo naquela raíz.”, disse o Jaime, pondo em palavras um dos meus pensamentos. “E, se era mesmo uma cobra, já fugiu quando lhe mijaste em cima.”
Não me consegui rir porque ainda tremia, abalado pelo susto, e ele, ao meu lado, tremia também, mas de frio, porque se tinha levantado só em t-shirt, cuecas e meias.
“Anda medricas, ajuda-me a levantar isto outra vez.”, disse ele já a bater os dentes.
Mas eu tinha feito tantos estragos que não conseguimos pôr a tenda de novo em pé. Era um emaranhado impossível de lona, estacas e cordas.
“Acho que temos de acordar alguém para nos ajudar.”, concluiu o Jaime. E eu, apesar da vergonha, concordei. Apontei a lanterna para as outras duas tendas e dirigi-me à mais pequena. Comecei por chamar o padre Matos, mas como o meu sussurro não parecia capaz de o acordar e eu não queria erguer mais a voz para não acordar os outros, acabei por abrir o fecho da tenda e olhar lá para dentro.
Estava vazia.
“O que foi?”, perguntou o Jaime ao ver-me paralizado, com o foco apontado lá para dentro.
“Não está aqui ninguém.”
“Se calhar estão todos a dormir na tenda grande, por causa do frio.”
Não fui capaz de argumentar que na tenda “grande” cabiam só três pessoas e que os sacos-cama estavam ali, bem estendidos e fechados, como se não tivessem sido usados. Assenti apenas com a cabeça e estendi a lanterna ao Jaime, que entretanto viera ver com os seus próprios olhos e se agachara ao meu lado. Ele levantou-se devagar mas avançou decidido para a outra tenda e bateu na lona como se fosse uma porta.
Nada.
Eu aproximei-me e olhámos um para o outro apreensivos antes de ele abrir o fecho.
Vazia. Os três sacos-cama estendidos e intocados como os outros dois.
“Acho que não se deitaram.”, disse eu. “Se calhar foram dar um passeio antes de dormir.”
O Jaime foi até aos restos da fogueira apagada e pôs a mão nas cinzas.
“Está fria.”
“Que horas são?” perguntei eu. E ele, surpreendido por eu interromper o seu momento Sherlock Holmes- índio com uma pergunta lógica, apontou o foco para o relógio no pulso.
“Quatro e meia.”
“A que horas nos deitámos?”
“Deviam ser dez ou onze. Não era tarde.”
Ficámos calados, sem querer expressar as idéias que nos corriam pela cabeça. Eu só conseguia pensar na cara na raiz da árvore, mas mesmo assim não fui capaz de contar ao Jaime o que verdadeiramente julgara ter visto. Era patético estar a pensar em vampiros, lobisomens ou simples assassinos psicópatas, mas, cortando afiado a noite escura, o vento açoitava tão impiedosamente as árvores e a lona da nossa tenda desfeita, mal pendurada nas estacas tortas, que eu comecei a tremer, já não tanto por causa do frio, mas por causa do medo que me começava a invadir o corpo e que eu não conseguia conter porque nunca o sentira assim tão puro, tão agudo, indomável, a cavalgar-me pelas veias.
Ainda não tinha terminado por completo quando ouvi a voz do Jaime perguntar:
“Estás bem, António?”
E, subitamente, a luz da lanterna que ele acendeu e apontou na minha direcção, iluminou a raíz da árvore que eu escolhera como alvo. Aí contorcia-se uma cara, um esgar, qualquer coisa entre o réptil e o humano. Dei vários passos para trás e o gemido de terror só me saiu da garganta quando já estava a cair em cima da tenda.
O Jaime chamou-me todos os nomes que se lembrou ao ver-me enrolado no oleado e nas estacas da tenda, lutando para me libertar.
“O que é que estás a fazer, idiota?!”
“Estava a fazer xixi, mas acho que vi uma cobra quando acendeste a lanterna.”
Levantei-me e tirei-lhe a lanterna da mão. Avancei cuidadosamente apontando a luz para as raízes da árvore. A única coisa de anormal era a mancha escura que eu tinha deixado no chão. Era apenas uma raiz mais contorcida que o costume. Mas eu apostava que a tinha visto mexer-se. Mais do que isso, se eu fechasse os olhos conseguia ver ainda aquela cara horrenda a fitar-me.
“Deve ter sido um reflexo naquela raíz.”, disse o Jaime, pondo em palavras um dos meus pensamentos. “E, se era mesmo uma cobra, já fugiu quando lhe mijaste em cima.”
Não me consegui rir porque ainda tremia, abalado pelo susto, e ele, ao meu lado, tremia também, mas de frio, porque se tinha levantado só em t-shirt, cuecas e meias.
“Anda medricas, ajuda-me a levantar isto outra vez.”, disse ele já a bater os dentes.
Mas eu tinha feito tantos estragos que não conseguimos pôr a tenda de novo em pé. Era um emaranhado impossível de lona, estacas e cordas.
“Acho que temos de acordar alguém para nos ajudar.”, concluiu o Jaime. E eu, apesar da vergonha, concordei. Apontei a lanterna para as outras duas tendas e dirigi-me à mais pequena. Comecei por chamar o padre Matos, mas como o meu sussurro não parecia capaz de o acordar e eu não queria erguer mais a voz para não acordar os outros, acabei por abrir o fecho da tenda e olhar lá para dentro.
Estava vazia.
“O que foi?”, perguntou o Jaime ao ver-me paralizado, com o foco apontado lá para dentro.
“Não está aqui ninguém.”
“Se calhar estão todos a dormir na tenda grande, por causa do frio.”
Não fui capaz de argumentar que na tenda “grande” cabiam só três pessoas e que os sacos-cama estavam ali, bem estendidos e fechados, como se não tivessem sido usados. Assenti apenas com a cabeça e estendi a lanterna ao Jaime, que entretanto viera ver com os seus próprios olhos e se agachara ao meu lado. Ele levantou-se devagar mas avançou decidido para a outra tenda e bateu na lona como se fosse uma porta.
Nada.
Eu aproximei-me e olhámos um para o outro apreensivos antes de ele abrir o fecho.
Vazia. Os três sacos-cama estendidos e intocados como os outros dois.
“Acho que não se deitaram.”, disse eu. “Se calhar foram dar um passeio antes de dormir.”
O Jaime foi até aos restos da fogueira apagada e pôs a mão nas cinzas.
“Está fria.”
“Que horas são?” perguntei eu. E ele, surpreendido por eu interromper o seu momento Sherlock Holmes- índio com uma pergunta lógica, apontou o foco para o relógio no pulso.
“Quatro e meia.”
“A que horas nos deitámos?”
“Deviam ser dez ou onze. Não era tarde.”
Ficámos calados, sem querer expressar as idéias que nos corriam pela cabeça. Eu só conseguia pensar na cara na raiz da árvore, mas mesmo assim não fui capaz de contar ao Jaime o que verdadeiramente julgara ter visto. Era patético estar a pensar em vampiros, lobisomens ou simples assassinos psicópatas, mas, cortando afiado a noite escura, o vento açoitava tão impiedosamente as árvores e a lona da nossa tenda desfeita, mal pendurada nas estacas tortas, que eu comecei a tremer, já não tanto por causa do frio, mas por causa do medo que me começava a invadir o corpo e que eu não conseguia conter porque nunca o sentira assim tão puro, tão agudo, indomável, a cavalgar-me pelas veias.
029 - Os Herdeiros
Montámos o acampamento já noite escura, eu e o Jaime tão atrapalhados com as lanternas e a tenda que eles tiveram de nos ajudar a pô-la de pé. Sentámo-nos a jantar à volta da fogueira, primeiro aturando as cançõezitas de escuteiro tocadas na guitarra que um dos rapazes carregara montanha acima, montanha abaixo, e depois começámos a contar anedotas e histórias.
A certa altura o João Paulo fez questão de nos explicar mais sobre Sintra começando pelo nome, que, ao que parece, significa montanha da lua e deriva da palavra Cyntia, de origem celta, que se refere à deusa grega Artémis, a virgem caçadora.
Aí o Jaime interrompeu-o:
“É estranho esse nome. Sin é o deus árabe da lua. Bem, não exactamente árabe, mas era esse o nome que os assírios usavam. A lua era um deus masculino para os povos da mesopotâmia. Claro que depois passou a ser referido como Alá, mas o simbolo da lua ficou. Quanto tempo é que os árabes estiveram aqui em Sintra? Dois, três séculos?”
“E tu falas árabe, se calhar…”, gozou um dos outros rapazes.
“Um bocadinho, estou a aprender.”
“De qualquer maneira isso soa-me a disparate”, disse o João Paulo. “Em todas as culturas a lua deve ser um astro feminino porque tem uma relação com o período das mulheres”.
“Não, disse eu. Em norueguês, por exemplo, “lua” é uma palavra masculina e o “sol” é feminino. É curioso porque também só dei por isso outro dia. Estava a ver um livro com pinturas de Munch e reparei num quadro que era referido como uma cena nocturna isso mas não estava a fazer muito sentido porque eu olhava para ele e via o sol, representado como um enorme…aa…falo, reflectido na água, e só conseguia ver aquilo como uma coisa masculina. Mas depois, claro, ocorreu-me que a lua é masculina em norueguês e que assim já fazia todo o sentido representá-la daquela maneira.”
Ninguém falou ou quis acrescentar algo a isto.
“O António está a aprender norueguês.”, esclareceu o Padre Matos, mas ninguém deixou de olhar para nós como se fossemos anormais.
Eu conhecia aquela atmosfera. Era a mesma que ficava no ar cada vez que eu abria a boca nas aulas. Ficava sempre a sentir-me um mete-nojo.
“Já é tarde, acho que me vou deitar.”, disse eu.
“Sim, também já estou com sono.”, disse o Jaime.
Fomos para a tenda e entrámos nos sacos-cama sem trocar palavra. Deitados em silêncio, a marinar numa amargura habitual, ambos sabíamos o que o outro pensava: que nunca seríamos capazes de socializar como pessoas normais antes de fazermos uma lobotomia.
O Jaime abriu o lado do saco-cama e pôs a mão de fora. Eu fiz o mesmo e adormecemos de mãos dadas.
A certa altura o João Paulo fez questão de nos explicar mais sobre Sintra começando pelo nome, que, ao que parece, significa montanha da lua e deriva da palavra Cyntia, de origem celta, que se refere à deusa grega Artémis, a virgem caçadora.
Aí o Jaime interrompeu-o:
“É estranho esse nome. Sin é o deus árabe da lua. Bem, não exactamente árabe, mas era esse o nome que os assírios usavam. A lua era um deus masculino para os povos da mesopotâmia. Claro que depois passou a ser referido como Alá, mas o simbolo da lua ficou. Quanto tempo é que os árabes estiveram aqui em Sintra? Dois, três séculos?”
“E tu falas árabe, se calhar…”, gozou um dos outros rapazes.
“Um bocadinho, estou a aprender.”
“De qualquer maneira isso soa-me a disparate”, disse o João Paulo. “Em todas as culturas a lua deve ser um astro feminino porque tem uma relação com o período das mulheres”.
“Não, disse eu. Em norueguês, por exemplo, “lua” é uma palavra masculina e o “sol” é feminino. É curioso porque também só dei por isso outro dia. Estava a ver um livro com pinturas de Munch e reparei num quadro que era referido como uma cena nocturna isso mas não estava a fazer muito sentido porque eu olhava para ele e via o sol, representado como um enorme…aa…falo, reflectido na água, e só conseguia ver aquilo como uma coisa masculina. Mas depois, claro, ocorreu-me que a lua é masculina em norueguês e que assim já fazia todo o sentido representá-la daquela maneira.”
Ninguém falou ou quis acrescentar algo a isto.
“O António está a aprender norueguês.”, esclareceu o Padre Matos, mas ninguém deixou de olhar para nós como se fossemos anormais.
Eu conhecia aquela atmosfera. Era a mesma que ficava no ar cada vez que eu abria a boca nas aulas. Ficava sempre a sentir-me um mete-nojo.
“Já é tarde, acho que me vou deitar.”, disse eu.
“Sim, também já estou com sono.”, disse o Jaime.
Fomos para a tenda e entrámos nos sacos-cama sem trocar palavra. Deitados em silêncio, a marinar numa amargura habitual, ambos sabíamos o que o outro pensava: que nunca seríamos capazes de socializar como pessoas normais antes de fazermos uma lobotomia.
O Jaime abriu o lado do saco-cama e pôs a mão de fora. Eu fiz o mesmo e adormecemos de mãos dadas.
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